sábado, 29 de novembro de 2014

A Odisséia Ébria


A exaustão da Terra havia me alcançado, havia me domado e tornado-me seu prisioneiro. Em um momento de descuido, conseguir romper com as correntes e pulei a cerca para o jardim desconhecido. Já em terra nova, caminhei em nuvens de seda, nuvens de borracha, pontes de ar. Eu vi o céu azul-celeste contrastando com afluentes de rosas, roxos, verdes e outros tons. Me fiz de andarilho pelo arco-iris do céu, enquanto tudo termina em cinzas no solo dos mortos. Cada vez mais perto do fim, o arco-iris foi se tornando mais quente. Suas cores estavam mais vivas. Eu estava mais vívido que um parede de luz alcoólica. Uma parede de algodão colorida e repleta de lágrimas de luzes. 

O odor de álcool. 
O odor da cerveja. 
A dor da certeza. 

Enfeitiçado como um néscio, fui engolido pela luz. Cuspido pelo fogo, quando Deus me deixou entrar. 

Me tornei um deus duvidoso. Quem iria limpar minha cama? Quem iria varrer o meu templo? Quem iria avivar minha chama?

Me tornei a solitária energia do Rock e a melancolia dos fados portugueses. Em bares com putas e cafetões, experimentei o sabor ardente do pecado original. Com homens bêbados em bares, me inebriei em meu nirvana sozinho, entre outros deuses da música e da solidão. Senti o enjoo do vinho e partes do meu fígado se espalharam em uma calçada de giz.

Senti os cigarros dos mafiosos formarem cortinas de fumaça no papel de parede dos pubs. Presenciei advogados contestando seus próprios argumentos de incisos, enquanto bebiam cerveja belga tal como leite. Homens de meia-idade fodiam com garotas de dez anos e mães vendiam partes dos seus filhos para universidades de medicina. A face hilariante do orgulho e desprezo dos pobres estampavam as ruas, enquanto pensavam que animal de estimação assariam em sua panela.

Coisas boas surgiam das sombras e malefícios nasciam na luz.

Fui empurrado para o Templo dos Deuses de Cera e ele se chamava "Coração dos Pobres". Quem não conhece a deficiência desses deuses que então se arremesse nesse templo. Eu presenciei a risada dos mendigos, enquanto apenas sonhavam com mesas de vinho.

Haviam pessoas cheias quando na solidão e vazias na presença de outros. A companhia da felicidade do som de si é a verdadeira fé. Isso é algo que morrerá conosco: a fé.

A fé existe para revelar o futuro e  a verdade suprema. O verdadeiro presente que Deus deixou para trás.

Pois no fim, sabemos que é tarde demais. Sempre foi e sempre será... tarde demais.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

O homem da alma de ferro

Ele sorri para mim todos os dias, quando passo próximo à ele às oito da manhã, e permanece sentado em frente à sua humilde casa (com janelas quebradas, paredes furadas) em uma cadeira de plástico e, no rosto, um sorriso de dentes amarelos que permanece estendido até às onze da noite. Ele já é um homem avançado em idade: tem setenta e um anos de vida e trinta de muletas. É aleijado, embora andasse (com muita dificuldade). Adora crianças. Sempre o vejo com algum minininho ou minininha nos braços, apontando, alegremente, para algum elemento que sempre fascina as crianças: uma borboleta,um felino que corre atrás de ratos ou um cachorro doido que simplesmente perseguia motos ou carteiros. Mas nunca se soube que ele tivesse filhos e nem, portanto, netos. As crianças que o cercam eram, certamente, de amigos, vizinhos ou parentes.

Eu nunca o conheci muito profundamente. Ele era só. Sem pais, conjugue, nada... Chegou a conhecer o escritor semi-recluso Haroldo Maranhão, mas foi há muito tempo. Agora ele é só. E, sendo só, sua felicidade era tanta que, surpreendentemente, não suportava guarda-la apenas para si. Tinha necessidade de partilha-la. Partilhava-o através de um sorrisso, de um "bom dia", ""boa tarde" ou "boa noite". Em frente à sua casa, havia uma pilha que lembrava um mini ferro-velho. A maioria dos entulhos eram grades. E essa era a profissão dele: um fazedor de grades. Alguns diziam: ferreiro. Tanto faz, quanto tanto ferro. Ele trabalhava com soldas, com metal de depósito e metal da alma. E, enquanto possuía saúde, seu emprego era o recheio e o emprego da sua vida. Com a descoberta da osteoporose em seu corpo por um médico velho, o fazedor de grades foi compelido à abandonar a sua profissão. As grades que fazia no passado, ajuntou (reuniu, não sei qual o melhor termo) em frente a sua casa, tais quais vigilantes, amigos porteiros, família.

Desde então, a profissão do fazedor de grades passou a ser o descanso constante emsua cadeira de plástico, em frente à sua casa, e a distribuição de sorrisos e gentilezas para amigos e vizinhos.

Sempre que alguém fala sobre o fazedor de grades e afirma que ele entregou-se à aposentadoria, eu nego e afirmo veementemente que ele apenas mudou de profissão. Agora, ele se tornou um fazedor de sorrisos. 

sábado, 4 de outubro de 2014

Os traidores da Santa Inquisição Moderna

//Senhor Nespoh!

As palavras saiam como fogos de artificio colidindo com paredes de concreto.

//Senhor Nespoh! Não se esqueça de que temos novos amigos. Seja discreto. Não conte para ninguém que não seja de extrema confiança. Não se esqueça!


Como esquecer? Ele o lembrou dez vezes na mesma hora. Durante os minutos antecedentes, Hans Nespoh pareceu uma mula empacada no próprio tédio... até ocorrer algo interessante. Via-se numa igreja, dormindo, sob a batina de um rapaz negro e musculoso de dezessete anos. Cacete! Dizem que este negro bateu na cara de um coroinha mais novo apenas porque existiam boatos de que este era masoquista. E o coroinha mais novo, por uma questão de desejo, insultou o homem negro com palavras impublicáveis apenas para que este pudesse bater mais violentamente. Mas o negro não era nem um pouco néscio. Sabia da estratégia dele e, como era muito misericordioso, o negro não se negou a oferecer uma dose extra de violência gratuita para aquele filho da mãe que amava ver o próprio sangue jorrar. E assim o negro bateu. Sim, bateu! Bateu forte para valer. 

Aquele era o prazer da violência gratuita, algo que apenas os homens mais experientes da Terra em questão de miséria eram capazes de compreender. Para os miseráveis, para os néscios, para os esclarecidos deste mundo doente, apenas o sangue liberta. 

Mas violência, de repente, tornou-se como cocaína: um prazer culposo, que é preciso fruir apenas em lugares ocultos. Esses lugares são vastos. O mais conhecido é o quarto. Este é o lugar não apenas do sangue, mas também de lágrimas e (no caso dos homens) também do sêmen, de muito sêmen, o sêmen que substitui a cera que lustra o piso de lajotas vermelhas. Se os homens fossem mais ligados ao dinheiro do que normalmente são eles cobrariam no mínimo duzentos reais para que as indústrias de limpeza doméstica e de material escolar utilizassem seu sêmen para a produção de graxa, lustra-móveis e cola escolar. Mas enfim! O ardor por emoções desconhecidas cobre os homens como o céu cobre a Terra. “Mas é preciso algo novo”, pensou o negro. E então, este chamou o padre Eliam: um homem idoso, de cabelos grisalhos, mas com fogo que oblitera larva de vulcão. Disse-se de que o negro e o padre foram para um compartimento afastado e desocupado da igreja. Ouviu-se muitos murmúrios, gemidos e objetos sendo quebrados dentro do recinto. Ninguém quis interromper. Algum tempo depois, Hans foi incumbido de ir até o quarto e informar ao padre que a missa iria começar. Foi até lá. Quando aproximou-se da porta, já não ouvia barulho algum. Nem gemidos e nem suspiros foram ouvidos saírem daquele recinto misterioso. Hans bateu respeitosamente na porta. Não houve resposta alguma. 

 //Padre? Padre você está aí? Preciso lhe dizer algo.


O silêncio foi como navalha fria na pele de Hans. Ele atreveu-se, com a respiração suspensa, a girar a maçaneta da porta. Sentiu o trinco destravar-se na soleira. Abriu lentamente a porta e, quando se deu conta, o padre estava de joelhos na beira da cama. Sua batina parecia mal vestida e ele aparentava estar orando. Mas sequer respirava. Hans aproximou-se dele, tocou na pele fria e pálida do seu rosto e pôs a mão  no peito do ancião. Aquele idoso já não mais possuía alma alguma em seu corpo. Deu-se conta de que seu amigo negro já não estava ali. Talvez já saíra quando o padre decidiu iniciar uma rápida reza para preparar-se para a missa. Assim Hans ficou delegado de chamar a ambulância. E chamou. Logo após, foi incumbido de ir pessoalmente até a casa do coroinha masoquista para informar sobre o deprimente fato. Os outros, segundo lhe disseram , não deveriam saber. Não deveria ser criado alarde no dia em que o padre iria proferir uma missa no dia de seu aniversario. Interessante presente enviado por Deus... ou, quem sabe? Bom, já estava morto. Mas esta história ainda não acabou. 

 Quando chegou na casa do coroinha, notou Hans que todas as portas estavam abertas e que nada havia sido roubado. Entrou ele apressado, impulsivamente (não sabia o motivo) na residência e, ao encontrar o quarto do coroinha, notou que este estava nú sobre a própria cama e acompanhado do negro que, por sua vez, vestia colant de roxo. Ambos estavam mortos. Na janela estava escrito dez vezes a frase: 

Não devo cometer pecados nojentos”.


Droga!”, exclamou Hans correndo assombrado daquela casa e com uma forte náusea lhe corroendo a garganta. Ele passou mal durante várias horas naquele dia. Entretanto, logo nas semanas que se seguiram, houve uma extrema carga de felicidade que recaiu sobre a alma de Hans. Era uma felicidade que nunca se havia visto antes em sua vida, embora continuasse vivendo da mesma maneira, possuindo as mesmas coisas e tendo o mesmo ritmo de vida. Nada parecia atribuir razão a sua felicidade repentina, enquanto a paróquia ao qual fazia parte ainda travava luto pelas mortes horríveis que lhe marcaram. Alguns dias depois, um outro coroinha, da mesma igreja de Hans, mas desta vez mais velho, apareceu morto dentro de sua própria casa. Disse-se de que neste dia, um velho amigo de Hans conversava aos cochichos com outro colega, dizendo: 


//Esse Hans é maldito. Mais um de seus amantes traidores foi ao inferno hoje. Eu é que não quero mais me aproximar deste cara. Nunca mais. Nunca mesmo, enquanto eu existir. 

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Entrevista com Lúcifer

Eu era um simples universitário graduado em jornalismo e havia acabado de ser admitido como redator-estagiário de um grande jornal quando esta experiência me ocorreu, tão inesperada como uma lufada de ar gélida numa gruta subterrânea. Eu estava na minha primeira semana de estágio e deveria realizar uma entrevista com uma personalidade importante e que, certamente, deveria atribuir peso ao meu currículo. Faltava uma semana para a entrega do meu trabalho ao departamento de redação e nada estava pronto. Começava a sentir o verme do desespero mordendo a minha carne nua e, quando parecia que eu deveria começar a formular uma desculpa ao redator, recebi uma chance estranha. Uma carta chegou ás minhas mãos, em papel reciclado (e com aroma de jasmins) de uma personalidade muito obscura que, embora eu não tenha convocado, mostrou-se disposto a trocar algumas palavras comigo. Era Lúcifer, o guardião-mor dos anjos decaídos. No momento que vi sua mensagem na carta, obviamente não acreditei. Achei que possivelmente fora enviado por algum colega de estágio, que se aproveitava de minha aflição para lançar-me em alguma piadinha de quinta categoria.

Todavia, ao observar a assinatura do espírito maligno, notei que não tratava-se de uma assinatura que pudesse ser propriamente humana. Pareciam signos antigos em que as letras cursivas faziam surgir lembranças de velhos mestres e sábios que a humanidade outrora possuía, com algum vão imperador de uma província de tempos remotos.  A fragrância belíssima do papel me fez pensar quão caprichoso era o anjo demoníaco e quão prepotente deveria sê-lo. Senti certa aclimatação com o aspecto primoroso que a correspondência tinha e comecei a pensar com a minha consciência se o anjo negro merecia uma entrevista de minha autoria. E quem acreditaria que eu, simples estagiário de comunicação social, tive um encontro profissional com o Grande Senhor da Escuridão, Mestre das Trevas? Eu seria visto como um lunático por todo o departamento de redação, ou então um grande mentiroso que lançou mão de um subterfúgio esfarrapado para uma simples tarefa não cumprida.

Mas, exceto Lúcifer, que outras escolhas haviam para mim?  Deveria eu arriscar um encontro com o anjo caído ou sabia que me restaria entregar apenas um folha em branco ao meu chefe, junto com uma caixa de chocolates. Assim, vesti-me com roupas de profissional renomado (embora eu ainda não alcançasse o nível) e coloquei, no bolso do terno, uma rosa branca para mostrar meu respeito (ou medo) para com o príncipe maligno. Peguei meu bloco de notas e canetas de tinta preta, tomei uma forte dose de café puro e, controlando toda a ânsia que se explodia em mim, parti para o local do encontro que estava descrito na carta. Curiosamente, notei que não havia um horário especificado para o compromisso marcado na carta. Porém, como Lúcifer era altamente conhecedor das dimensões temporais, deduzi que ele saberia o horário correto em que eu partiria para encontra-lo.

Meu coração parecia intensamente açoitado por correntes de ácido à cada metro que eu me aproximava do local marcado. Um sabor azedo começou a expandir-se em minha boca e, à medida que andava, comecei a ouvir sons de sinos que ficavam cada vez mais altos. Repentinamente, me vi numa enorme plataforma branca, no meio do nada, como se os prédios, casas e pessoas houvessem desaparecido do mundo.

Então, mais à frente, avistei um menino pré-adolescente sentado numa cadeira de jantar e cercado de vários pombos vermelhos. Comecei a me aproximar do menino e, quando cheguei à uma determinada distância, os pombos de penas rubras voaram, criando vários pontos vermelhos que se espalharam pelas nuvens. O menino,olhando pesaroso para os pássaros que o abandonaram, disse num suave e lamentoso tom de voz:

//Você mandou meus pássaros embora.

Corando por completo, eu me desculpei com ele. Mal havia eu chegado e minha primeira impressão certamente se distanciou de um caráter positivo. "Que droga!", censurei-me intimamente em meu pensamento. O garoto, então, retirou seu olhar dos céus e me fitou com aqueles olhos cor de rosa. Aliás, o aspecto do menino me era completamente inconvencional. Sua pele era massantemente macia e pálida com tons rosados (principalmente ao redor dos olhos). Sua expressão era triste e soturna e, embora aparentasse que estava atento à minha presença, eu possuía a impressão de que seu olhar estava, na verdade, voltada ao vazio. Seu rosto era oval, com bochechas medianas, e cabelos muito lisos e compactos de cor de avelã que estavam penteados na forma de um livro partido quase ao meio. Estava ele vestido apenas com uma bermuda bege de onde varavam suas macérrimas pernas sem pelo, pés descalços e um tronco de onde, no meio do peito, brotavam cogumelos de pele com chapéus de cor dourado-ouro. Dos chapéus dos cogumelos saiam, a cada três segundos, pedacinhos brancos que subiam até o céu e se desmanchavam nas nuvens.

Outro elemento curioso eram as unhas vermelhas e cumpridas que o garoto possuía em ambas as mãos como se fossem postiças (embora parecessem totalmente reais... e certamente eram). Em suma, o menino possuía a aparência de um belíssimo boneco de pele e sua beleza era tão intensa, tal qual uma luz eterna, que, num determinado instante que meu olhar se deparou com seu delicado rosto, senti uma vontade quase animalesca de encostar meus lábios naquela pele macia. Senti meus lábios formigarem e meu desejo foi tornando-se mais intenso quando ele, com sua voz de veludo, disse-me calma e lentamente:

//Sente-se, amigo.  Sentiria-me constrangido se eu soubesse que desperdicei qualquer porção de seu precioso tempo.

//E me sentarei onde?/ questionei eu, olhando em volta e só recebendo a visão de uma abandonada plataforma branca.

O menino, assim, apontou o dedo macérrimo para atrás de mim e visualizei um trono feito de metal enferrujado. Não compreendi aquele gesto. Por que o Mestre das Trevas, que decidiu se apresentar á mim como um garoto franzino, me permitiria sentar num trono (ainda que tomado pela ferrugem) enquanto ele (o maligno) permaneceria sobre uma simples cadeira de madeira? Por que diminuir sua potência vaidosa para se apresentar à mim? Não me pareceu coerente. Mesmo assim, sentei no trono de metal frio indicado por ele e vi um leve sorriso estampar seu rosto por alguns segundos (como se soubesse o que eu estava pensando). Senti um odor de jasmim emanar intensamente de sua pele e, ao entrar em minhas narinas, parecia que uma enorme bolha se expandia dentro do meu peito. Tentei ignorar o incômodo que sentia em minha pele e, para não ser eclipsado pela beleza infantil e sobrenatural do menino, evitei olha-lo muito continuamente, mantendo maior foco no bloco de notas em minhas mãos. E tentei iniciar calmamente a entrevista, embora atropelasse as palavras:

//Bom, Senhor Lúcifer. Já irei dar inicio á entrevista e, primeiramente, gostaria de saber se posso chama-lo assim: Senhor Lúcifer.

//Logicamente./ respondeu, plácido como um monge/ Não se iluda com meu aspecto jovem. Tenho quase a mesma idade que o mundo, de acordo com a perspectiva temporal dos homens. Entretanto, devo informar que a dimensão do mal não possui taxas mensuráveis. Assim, os anos que possuo de existência e a forma de tratamento que você me dirige não tem qualquer importância.

//Tudo bem/ prossegui, com um leve pigarro/ Se me permite comentar, jamais achei que um espírito maligno pudesse ter um aspecto tão belo.

//A beleza é fruto da minha magnificência. Os humanos se esqueceram disso após algum tempo. Mas Deus partilhou comigo a faculdade do belo quando nasci e, assim, me aproveito dele para fazer-me o mais belo dos seres. As escrituras sagradas é que degradam a minha beleza.

//Bom...Minha primeira pergunta é: por que me convidou para fazermos esta entrevista?

Ele levou os olhos rosados aos céus e respondeu como se estivesse em devaneio:

//A humanidade pegou minha crueldade por muito tempo e tomou posse dela, como de partido próprio. Usou e continua usando meu nome discriminadamente como fonte de autoridade. Também utilizam o nome de Deus hipocritamente e sem o mesmo respeito de outrora. Deus, entretanto, faz sua justiça no devido tempo inalteradamente, por mais longo que seja. Eu não trabalho assim. Quero que anote todos os elementos máximos que denunciam minha força, esperteza, paciência e perspicácia. O mundo está me devendo o respeito que outrora me oferecia.

//Pensei apenas que me ajudaria em minha tarefa de estágio./ questionei com um arrepio na espinha, temendo estar sendo ousado mais do que o necessário.

Ele olhou diretamente em meus olhos com aqueles círculos oculares roseados e senti como se meu cérebro estivesse queimando profundamente. Parecia que um grande enxame de abelhas houvesse se instalado em meu crânio e fui preenchido por um incômodo continuo. E ele me disse, por fim:

//Lhe darei o que quer. Mas, primeiro, preciso de algo. Algo que você tem e que me deixará cada vez mais poderoso. Algo que devolverá meus antigos impulsos e me trará novamente a glória do mundo.

//E o que seria isso?

//Fique de pé./ ordenou, agora, com grave voz de imperador.

Imediatamente, ergui-me diante daquela ordem tão voraz. O garoto, então, desceu da cadeira de madeira e flutuou diante de mim. Seus pés deixaram o chão e seu rosto parou na altura do meu rosto. Ele me encarou por um bom tempo, e então, inesperadanente, ele me deu um beijo, um beijo forte e cortante. Senti sua saliva ácida descendo pela minha garganta e sua língua enroscando-se em volta dos meus dentes.

Então, com toda a força de seu maxilar e de seus dentes de leite, ele cortou minha língua de um modo que nem sei explicar. Desgrudei meus lábios dele por alguns instantes e dei um grito altamente estridente que fragmentou algumas pedras da plataforma. Aproveitando a minha boca aberta, o garoto agarrou minha nuca e voltou a me beijar com lábios ardentes como brasa. Depois, meu corpo paralisou-se por completo, com minha espinha dorsal ardendo bastante. Então, de maneira estranha e inexplicável, mesmo sem desgrudarmos os lábios, ouvi-o dizer: "Você passa a ser meu agora." Minha dor corporal se elevava continuamente, sentindo, dessa vez, as unhas grandes do garoto se encravarem em meu pescoço.

Atingindo um ardor corporal cada vez mais intenso, eu estava prestes a soltar um novo grito de dor quando, então, acordei deitado na cama do meu quarto. Minha pele estava suada e quente. As persianas sequer estavam erguidas e, na leve escuridão do meu quarto, dirigi meus olhos para o despertador. Eram seis e meia da manhã. Não conseguia crer que havia sido apenas um sonho, pois havia sentido uma dor real... uma expectativa real. Havia visto um menino real? Talvez eu houvesse visto e até tocado nele. Talvez o beijo tivesse sido real. Eu não sabia estava muito confuso.

Mas, se meu diálogo com Lúcifer houvesse sido apenas um sonho, então minha tarefa de estágio ainda estava pendente. Meu alivio deu lugar à uma preocupação antiga. Levantei-me sem muito ânimo e, afastei a persiana das janelas e deixei o quarto bem iluminado. E o mesmo sol que iluminou o recinto também deu luz à uma prancheta cheia de papeis (com várias anotações à caneta) que se encontrava sobre minha escrivaninha. Tomei a prancheta em minhas mãos e, com espanto, notei que era uma entrevista completa de autoria minha, intitulada "Entrevista com Lúcifer". Atrás dos papéis, encontrei um pequeno bilhete, onde, com aquela grafia antiga, se encontrava escrita: "Aqui está o nosso combinado. Da mesma forma que lhe dei a entrevista, estou agora com uma parte original de você. A melhor parte que eu poderia ter. Boa noite." 

E o tempo passou. Até hoje me encontro com a entrevista que o anjo maligno me deixou. Está guardado na minha gaveta. Há cada minuto, me pergunto quando poderei lê-la de novo sem aquela sensação de lábios quentes que o desgraçado do inferno deixou em minha boca.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

O Bichano do Vizinho

   Um felino branco sempre anda com suas patas magras nos telhados vizinhos à minha casa. Eu já havia passado pela experiência de ser dono de bichos de estimação. Já tive um gato e um cachorro quando eu tinha aproximadamente, uns dez anos de idade, Era tão apaixonado por bichos quanto por livros, filmes e quadrinhos (como qualquer outro garoto). Mas, infelizmente, eu quase não permanecia em casa para cuidar dos meus queridos filhotinhos e meus dois animais de estimação acabaram tendo, para minha desgraça (e deles também) fins cruéis. Meu gato acabou entrando, despercebidamente, em uma caçamba de lixo, e, quando o lixeiro pressionou aquele botão para extrair o chorume do lixo, pôde-se perceber que o sangue do meu gato (e a alma dele) se escorreram ali juntamente. Meu cachorro, por sua vez, fugiu de casa sem ser notado por nenhum dos meus familiares e, quando corria por uma estrada asfaltada, querendo atravessar a rua (possivelmente para buscar comida ou simplesmente liberdade) ele foi atropelado por um carro que dirigia com uma velocidade altamente veloz. A única lembrança que tive dele foram pedaços de seu intestino que permaneceram espalhados no asfalto (até ser retirado pelo serviço de limpeza da Prefeitura, algum tempo depois). 
   Depois dessas experiências desastrosas e de um luto que demorei inúmeros meses para suprir (nenhum humano me fez chorar tanto quanto eu chorei por meus bichinhos). jurei a mim mesmo que nunca mais me atreveria a ser donos de animais de estimação. Mas isso não quer dizer que parei de me interessar (e principalmente de me fascinar) com eles. O bichano do meu vizinho, que comecei falando no inicio do post, foi um dos bichos que mais me deixou curioso (com um búfalo atrás da orelha). Ele era conhecido pela sua incrível capacidade de aparecer desaparecer rapidamente (nem um raio era mais rápido) e pelos seus sofríveis miados.
   Afinal: para quê despertador, quando você tem um gato faminto que lhe acorda pontualmente todos os dias às seis e meia da manhã? Para ser sincero, seus miados são constantes e ele sempre mia enquanto caminha pelos telhados das casas de todos os vizinhos do bairro. Mas, curiosamente, ele sempre faz questão de miar perto da minha casa e próximo ao meu quarto pontualmente ás seis e meia da manhã todos os dias (é claro, que no domingo isso me irrita). E, como eu afirmei anteriormente, seu miado é sofrível, insistente e não permite qualquer compreensão mais profunda. Quando ele me acorda com sua voz dolorosa, eu me levanto de minha cama, abro a janela e fico observando-o por um longo tempo com um dó covarde. Não nego que cresce em mim uma fervilhante vontade de lhe oferecer uma larga tigela de leite. Quando ele está na minha mira, eu admiro encantado seus pelos de uma cor branca tão láctea e seus olhos azuis tão claros, que penso estar em frete à uma pequena Quimera com pelos de papel. Entretanto, seu miado sofrível me faz questionar se sua queixa é realmente a fome (ou apenas ela). Ele também poderia querer abrigo do sol, da chuva. Poderia querer um novo dono, pois, possivelmente, seu antigo "companheiro" era uma criatura idiota e irresponsável. Vá lá se saber o queria o maldito gato.
   Apesar deste gato fazer visitas constantes à casa do meu vizinho, eu suspeitava seriamente de que ele era um gato de rua. Entretanto, todas as manhãs, ás seis e meia da manhã, quando ele vinha me despertar do meu (ora conturbado, ora raramente alegre) sono, ele passava a se alforriar do seu aspecto mundano para entregar-se à mim. Todas as manhãs, ás seis e meia da manhã, aquele não era mais o gato do vizinho e tampouco do mundo: aquele passava a ser o meu gato e eu o possuía em minha alma e fazia dele uma aquarela viva. 

Os Prisioneiros Tropicais: Retorno à Ilha da Solidão

   Sinto visitar um imenso porão de livros numa ilha deserta.  A ilha tem um aspecto amarelado. Seu céu é amarelo. Vejo um homem magro, de terno prateado e sem brilho. A pele dele é pálida. Tem sombras altamente escuras ao redor dos olhos (pretos, no sentido de maquiagem). Ele possui um cabelo loiro, volumoso, arrepiado. O homem é melancólico, cabisbaixo e atende pelo nome de N. Não estou mais no porão. Estou na beira dele, sentado na areia branca. Além do homem melancólico, percebo a presença de um lenhador. Este é gordo, barbudo, com chapéu de palha, camisa vermelha quadriculada e calça de cor carmesim. 

  O lenhador não sabe da existência do homem melancólico. O lenhador só corta, com sua serra elétrica, as palmeiras da praia, uma à uma, até sobrarem três. As lágrimas do homem melancólico se transformam em sangue quando tocam a areia. Areia vermelha. Confesso que nunca havia visto aquilo antes. O homem melancólico me deprime. Não posso e nem quero ajuda-lo. Estou exausto da idiotice das experiências humanas. Até a brisa daquela praia cortam o meu rosto, mas não vejo sangue algum. Depois percebo que o meu sangue está nas veias do homem melancólico. Estão em suas lágrimas. Como ele roubou meu sangue? Não sei. Nem estou interessado em saber. Quero ir embora. Dou meia volta e começo a caminhar, para ver se encontro alguma trilha que, no mínimo, me leve à outra extremidade que me isole do homem melancólico e do obeso lenhador da serra elétrica. 

   Num trecho do meu percurso, me deparo com um buraco quadrado, com bordas de madeira, no chão da praia. Lá embaixo vejo uma escuridão aterradora. "Não podemos sair", alguém diz. "Sombras estão se mexendo aqui no escuro. Somos tudo aquilo que não sabe entrar nem sair. As sombras tem vida própria...e não podemos sair".

A Ilha do Homem Invisível

 

Um dia, morarei numa ilha. Numa fazenda isolada, única, num lugar deserto. Minha casa será rústica. Quase um refúgio de alvenaria, em tijolinhos nus de tonalidade clara e assoalho de madeira de lei. Um fogão quatro bocas e, surpreendentemente, elétrico. Uma chaleira, um bule, uma mesa de madeira interiorana. Uma vitrola ao lado de uma estante de livros (pois o silencio é divino, mas a vida sem alguma música, em algum momento, se torna insossa demais). Obviamente contarei com o prazer de um cômodo, um recinto amplo e confortável, onde irei instalar a minha biblioteca particular com inúmeros livros, em inúmeros idiomas, em várias instantes de madeira à perder de vista. 

   De um lado da casa ouço mugidos: são vacas (instaladas na grama claramente verde e extensa do meu celeiro), No outro lado da casa, um homem velho, magro, de cabelos brancos, suéter vermelho e olhar profundo se encontra parado diante da minha janela de madeira, que está aberta (acho que ele abriu, pois eu sempre a mantenho fechada). Ele contempla a extensa praia de areia fina e clara e de espumosa água azul-planeta que quebram suas ondas próximas da superfície. Nenhum pássaro, avião ou asa-delta se interpõe. Esse homem olha ininterruptamente para a praia. Me surpreendo com ele, pois imaginei estar sozinho. Imaginei estar solitário da humanidade, como eu sempre desejei. Quem é esse homem? Não o conheço de canto algum. Até minha família deixou de existir. Quem é esse homem? Uma voz me alerta "Ele é o homem que tudo vê." Me sinto intrigado com isso. "Como ele pode ser o homem que tudo vê, se ele não me vê?", questiono. 

   De fato, ele não vê a mim, que estou à poucos metros dele. Para ele eu devo ser como névoa, poeira, ou uma coisa mais fina (e invisível). Então, percebo aliviado: "Sim. Estou sozinho. Estou com Deus. Ou seja, estou na luz"