domingo, 14 de fevereiro de 2016

A Piscina Escarlate

O Orfanato Midian para Meninos era um lugar capaz criar encanto no mais perverso dos corações. Cada cama, cômodo, janela, chinelo e cheiro de roupas de crianças na flor da idade podiam atravessar as narinas dos piores malfeitores e torna-los novamente cordeiros do universo infantil do qual já haviam há muito se afastado. Cada pilar do orfanato (já um tanto desgastado pelo tempo) testemunhava diariamente a correria que os meninos faziam nos corredores em busca de um brinquedo perdido, uma página de caderno rasgada, uma chinela perdida no jogo de pira ou qualquer outra coisa.

Ás vezes, um choro irrompia em seus inocentes e imaculados rostos, tornando ainda mais tentador o impulso de apertar aquelas bochechas rosadas e macias com nossos dedos dobrados. Todavia, aqui e ali se espalhavam garotos que ainda gozavam do brilhante sol da alegria pura e se viam afastados da amargura em que adultos se afundavam todos os dias.

Em seu doce universo, aquelas crianças eram donas de si, imperadores do mundo, e faziam de caixotes de madeira suas tribunas, de toalhas de mesa suas capas de super-herói e de suas vozes de veludo as suas flautas de Hermelin, que usavam para conversar com seus amigos imaginários. Quando possuíam medo de algo, o enfrentavam até serem eles próprios (os orfãos) dignos de temor. Quando tinham medo de tomar banho, ameaçavam o chuveiro ou a banheira até torna-los servos fieis do "pequeno imperador-criança".

Quando temiam uma matéria escolar, a estudavam à fundo ao ponto de se sentirem especialistas no assunto. Quanto às funções de cada um, mesmo sendo crianças, possuíam várias. Alguns passavam trotes telefônicos, outros, trajados de médicos, faziam cirurgias em algum boneco oriundo de uma guerra terrível num país longínquo. Outros já escreviam poesia e alguns simplesmente brincavam de criar universos paralelos.

Todavia, nem todos os meninos do Orfanato Midian possuíam intenções tão puras e inocentes naquele ambiente tão alegre. Em um dormitório isolado na ala oeste, sempre era visto um menino magro, de bochechas roseas, cabelos lisos e castanhos e um pequeno caderno de anotações na mão esquerda, acompanhado de uma caneta na mão direita. Esse menino, o mais tímito de todos, possuia nas letras seus melhores amigos e na prosa das ficções infantis seus melhores companheiros imaginativos. Triste, sempre triste, ele parecia uma permanente incognita aos outros colegas que o viam, quando não raramente abraçado ao seu caderno, sozinho num canto escuro, deitado no chão e fitando o teto. Ele, em eventuais momentos, tendia a conversar com sombras e colecionar fotografias. Especificamente, fotografias de praias vazias. A maioria dos livros que lia se passavam em ilhas desertas, em paraísos aquáticos, de água cristalina e com um sol vermelho-sangue.

Em seu caderninho ele anotava os sonhos que sempre se repetiaem sua cabeça, quando caia em sono profundo: sonhos com cadáveres de adultos mortos, crianças mortas, pessoas mortas de todas as idades. E de tanto se repetirem, acabaram se tornando seus sonhos preferidos, de tal maneira que, algumas vezes, ao sonhar com isso, um sorriso malicioso crescia em seu rosto. 

Seu devaneio maligno mais grandiloquente incluia uma piscina gigantesca que transbordava em sangue e com os cadáveres de todos os seus amigos mergulhados em caldo rubro e empilhados uns sobre os outros. O Orfanato Midian realmente tinha uma piscina gigantesca, que geralmente se encontrava vazia, e se localizava no canto mais afastado do orfanato. E com o devaneio homicida crescendo cada vez mais em seu coração, o menino pegou sua caneta e escreveu em seu caderninho: "Não posso perder tempo". Assim, guardou o caderninho junto com a caneta dentro de um espaço debaixo do assoalho de seu dormitório, se ergueu e começou a andar.

Caminhou até o refeitório do orfanato, onde havia um lindo garotinho de bochechas rosadas, cabelos louros encaracolados e camisa vermelha. Este estava sentado junto à uma mesa, montando peças de Lego. O "garotinho malvado" chamou o loiro e este, por sua vez, parou o que estava fazendo para olhar o outro.

"O que é?", perguntou.

"Quero te mostrar uma coisa", respondeu o pequeno malvado, "Vem aqui"

E o menino do Lego se ergueu e começou a seguir o pequeno malvado. Os dois começaram a caminhar sem qualquer interceptação até o canto mais afastado do orfanato. Era dia de feriado e boa parte dos funcionários havia sido dispersada de suas atividades, exceto o diretor da instituição (que nunca se retirava de sua sala). Assim, os dois meninos se encontravam praticamente livres naquele dia.

Eles entraram sem qualquer preocupação ou dificuldade na escura área de natação e, ao acenderem as luzes, encontraram um apanhado de lixo amontoado num canto junto a uma pá e uma vassoura velha. Mais à frente havia uma enorme piscina sem água e sem raias. Ambos os garotos começaram a se aproximar da piscina. Num determinado trecho, o menino malvado parou e ficou observando o menino loiro aproximar-se da piscina. O menino do Lego, olhando para o fundo da piscina vazia, perguntou para o outro sem virar-se para ele:

"Você vai encher essa piscina?"

"Vou sim. E vou começar com você", respondeu o petiz perverso, retirando uma navalha afiadíssima do bolso da calça e, colocando-a em volta do pescoço do loiro, cortou as cordas vocais dele. Este apenas sentiu o sangue descer até o estômago e pulmões, começando a golfar como um porco. O garoto malvado empurrou, então, o orfão loiro para o fundo da piscina e foi possível ouvir o som do crânio deste se quebrando ao bater lá embaixo. O pequeno perverso olhou da borda da piscina para seu  cadaver inaugurau e para o sangue escuro e espesso que escorria dele, que se espalhava pelo piso do fundo. Pensou: "Foi um bom começo. Mas eu preciso de mais, muito mais, se eu quiser ver essa piscina cheia, transbordante."

O garoto, assim, caminhou até a pilha de lixo que estava amontoado no canto esquerdo e pegou um pedaço de papel usado. Usou o papel para limpar o sangue de sua navalha e voltou a guarda-la no bolso de sua calça. Andou até a saída da área de natação e desligou a luz antes de sair. Achou desnecessário, pois ninguém nunca entrava ali, mas o garoto não queria facilitar para eventuais vacilos. 

E já sabia ele, mentalmente, quem seria a próxima vítima. Ou melhor, suas próximas vítimas (assim mesmo, no plural). Tratava-se de dois irmãos gêmeos, na idade de oito anos cada um e que tinham, em comum, a paixão pelo mesmo esporte. Chegando na quadra poliesportiva do orfanato, o pequeno malvado visualizou os dois irmãos numa partida acirradíssima de tênis de mesa (chamado popularmente entre eles de "ping-pong"). Suas atenções estavam totalmente voltadas pra disputa, com um sorriso nervoso que lhes acompanhavam no rosto e o suor quente que descia da raíz de seus cabelos ruivos e encaracolados até o queixo.

"Agora que os vejo, estou com medo de fazer qualquer coisa à eles. Parecem tão felizes", pensou o pequeno malvado de si para si mesmo, começando a sentir, no âmago de seu espírito, uma pontada de receio. Entretanto, logo após, refletiu com cólera nos olhos: "Mas, por outro lado, também tenho o direito de ser feliz. E além do mais, preciso terminar o que já comecei." 

Assim, resoluto, o pequeno malvado deu um assobio que cortou o ar tão bruscamente que atraiu de imediato a atenção dos gemeos. Quando os irmãos olharam curiosos para o menino perverso, este lhes disse: 

"Desculpa atrapalhar a partida de vocês. Mas vocês podem vir aqui e me ajudar numa coisa? Por favor"

O gêmeos, então, disseram que sim e atravessaram a quadra na direção do pequeno vilão e seguiram ele até uma área em que havia cordas amarradas em canos grossos próximo às paredes. O garotinho malvado disse:

"Já faz quase meia-hora que estou tentando dessamarrar essas cordas, mas não consigo. Dessamarrem elas pra mim, por favor"

Os gêmeos então, gentilmente, começaram a dessamarrar as cordas. Enquanto faziam isso, o pequeno perverso veio por trás deles com um machado e enfiou a lâmina com força nas costas de um dos meninos. Esse menino gritou bastante e depois o pequeno perverso quebrou o pescoço dele com as mãos. O corpo ensanguentado dele caiu no chão. O outro estava prestes a correr, quando o pequeno perverso enrolou a corda em seu pescoço e apertou a corda, enforcando-o, até mata-lo. 

Com os dois mortos, o assassinozinho pensou em como carregaria os corpos deles. "Ora, muito simples", pensou o pequeno, tendo uma ideia em sua mentezinha doentia. Ele pegou a corda que havia usado para enforcar um dos garotos, amarrou em torno do tornozelo dos dois e simplesmente começou a puxa-lo, como se puxa um carrinho de feira. Puxou até a borda da piscina e depois desamarrou a corda do tornozelo dos gêmeos e empurrou os cadáveres para a piscina.

Ali, da beira da piscina, ele contemplou os corpos dos gêmeos formando uma poça de sangue. Achou dislumbrante aquela visão, como se estivesse diante de uma pintura renascentista. Passou a mão pela testa, limpando o suor que começava a surgir em seu rosto. Ainda faltava muito para a piscina ficar cheia. E o garoto perverso foi atrás do que faltava.

Um a um e de modos diferentes, o menino perverso foi tirando a vida de cada pequeno e jogando seus corpos na piscina que, aos poucos, ia transbordando. 

Após alguns minutos, faltava apenas matar um único órfãoUm garoto de cabelos pretos, com sardas no rosto, chamado Matias, estava se escondendo pelo orfanato. Ele silenciosamente estava acompanhando a missão de seu amigo cruel em encher a piscina.

"Como ninguém consegue parar esse muleque? Não é possível. Será que o diretor não está vendo nada?", refletia Matias consigo mesmo. Ele cautelosamente foi subindo as escadas até a sala do diretor, que ficava no último andar do bloco D.

Matias entrou na sala. Ela estava escura e a única luz que vinha da janela aberta aos fundos iluminava o ambiente. Matias viu a cadeira do diretor, virada em direção à janela.

//Diretor, o senhor precisa fazer algo!/disse Matias, quase clamando/ Aquele muleque esquisito do dormitório oeste está matando os órfãos e juntando os corpos deles na piscina do orfanato!

O diretor não respondeu. Permaneceu em silêncio.

Matias ficou raivoso e então disse:

//O senhor não vai fazer nada mesmo?! Vai deixar ele matar todos os meninos?

Mais uma vez, o silêncio permaneceu e o diretor continuou imóvel.

Matias, agora bufando, andou à passos largos em direção à cadeira do diretor.

//O senhor não vai me responder?!/gritou Matias /O senhor precisa fazer alguma co...

Matias, então, pulou para trás. Seu rosto foi tomando por um forte espanto e medo ao ver que o diretor estava morto, com uma faca de cozinha enfiada no peito.

//Meu Deus do Céu!/disse Matias para si mesmo.

E foi com um espanto ainda maior que ouviu:

//Não sei se Deus pode fazer alguma coisa por ele agora

Então Matias se virou na direção da voz e viu o que mais temia: garoto perverso, parado à entrada da sala. Em suas mãos, ele estava segurando um arpéu. Mas não era um arpéu comum: possuía um gancho que havia sido fundido à um punhal afiado. Ele certamente havia adaptado aquilo.

//Até que foi fácil matar ele./disse o garoto serial-killer/Adultos acreditam em qualquer coisa que uma criança conta pra eles. Eu disse para ele que queria contar um segredo. Mandei ele chegar bem perto para eu falar. E quando ele chegou perto o suficiente, enfiei aquela faca no peito dele. Você tinha que ver a cara que ele fez. Foi muito engraçado. Pra valer. O único problema foi para colocar ele sentado na cadeira de novo. Foi trabalhoso demais, porque ele é muito pesado. Mas eu consegui. Valeu a pena. Eu amei sentir a lâmina da faca entrando no peito dele. Faria tudo de novo. Mas agora é sua vez. Você vai ser a cereja desse lindo bolo de sangue que estou preparando. Ou seria piscina de sangue? Bom, não importa. Só sei que vai ser maravilhoso. E eu garanto que isso não vai doer. Pelo menos, não em mim.

O órfão assassino começou a andar em direção á Matias, calmamente.

À medida que o assassino avançava, Matias caminhava para trás. Então, Matias bateu as costas na janela aberta, já não havendo mais espaço para recuar. Quando olhou pela janela, viu que lá embaixo havia a piscina, transbordando de corpos.  

Ele então subiu pela janela e segurou-se nas bordas, de frente para a sala.

//Você não precisa fazer isso./disse Matias, bastante temeroso, para o colega assassino.

O pequeno perverso, então, abriu um sorriso cruel no rosto e disse:

//E que escolha você tem? Se decidir pular, vai cair na piscina lá embaixo, junto com os outros corpos. Na verdade, vai até me poupar bastante trabalho. Então, eu te peço. Por favor, pule.

Matias suava e tremia em sua posição. O garoto serial-killer à sua frente estava certo: não havia saída. Se pulasse, cairia no topo do monte de corpos na piscina e certamente morreria. Se ficasse na sala, o órfão assassino o mataria. De qualquer maneira ele iria morrer. Seria como pular da frigideira para cair no fogo. 

Ele olhava pela sala em busca de algo que pudesse ajudá-lo. Não sabia o que fazer. Foi então que viu um botão amarelo, no canto da mesa do diretor. Que botão era aquele? Seria uma linha-direta para a polícia? Matias não tinha ideia. Nem sabia se, àquela altura da situação, faria diferença.

O garoto perverso então, cansado de esperar, apontou o arpéu com ponta de punhal para Matias e disse:

//Já que estou vendo que você não vai colaborar comigo, então parece que vou ter que mata-lo mesmo.

Matias tremeu da cabeça aos pés. Estava tudo acabado.

//Adeus, Matias. Foi muito divertido fazer isso.

O assassino então, disparou o arpéu. Matias, num reflexo impensado, pulou para dentro da sala e acabou caindo em cima da mesa do diretor, acionando o botão amarelo acidentalmente.

O arpéu do assassino acabou preso numa roldana que estava pendurada metros acima da piscina. A roldana começou a girar e o menino perverso, que segurava o arpéu com força, foi puxado violentamente.

Seu corpo atravessou a janela e ele acabou soltando o arpéu enquanto estava no ar. O garoto assassino despencou metros abaixo e caiu bem em cima da montanha de corpos na piscina escarlate.

O impacto da queda foi tão brutal que quebrou seu pescoço e deslocou seus ombros, matando-o de imediato. Um fio de sangue começou a escorrer da sua boca e do seu nariz. Foi o último corpo da piscina.

Na sala do diretor, Matias se pôs de pé e correu até a janela. Olhou para a piscina, enquanto recuperava o fôlego. Ainda assustado, não conseguia pensar outra coisa agora: "Ele conseguiu o que queria, mas não do jeito que planejava.

Matias então pegou o telefone do diretor que estava sobre a mesa. Telefonou para a polícia e contou tudo que havia acontecido. A polícia não acreditou de primeira no que foi contado, mas depois de muita insistência decidiu dar voto de confiança no relato de Matias.

Após algumas horas, a polícia chegou ao local.

Encontraram, então, todas as evidências que compravam a história de Matias: a piscina com os corpos das crianças, entre elas o próprio assassino. Encontram também, obviamente, o corpo do diretor.

Ficaram abismados com tudo que haviam visto.

Entretanto, o próprio menino que havia acionado a polícia, Matias, não estava no orfanato. 

No dormitório onde Matias dormia, encontraram um bilhete que dizia:

"Juntei todas as minhas coisas em uma mala e estou indo embora sem destino. Talvez algum dia me encontrem. Talvez não. Independente disso, se encontraram esse bilhete, então encontraram todas as provas que validam meu relato.

Talvez um dia o orfanato Midian possa voltar a ser o que era. Mas as pessoas nunca voltam. Esse é o verdadeiro legado dos Midian: uma história que náufragou em uma piscina de sangue"

domingo, 15 de novembro de 2015

Tributo de Guerra

O campo está armado
O tabuleiro está posto
Na mesa das sete labaredas.

Os peões ardem em febre
na vanguarda do batalhão de Guerra.
Estratégias escritas em blocos de notas,
na parede dos banheiros
e em papiros de nuvem e celulose

Os enviados agarram as trombetas
com mãos resolutas de um suor
que emana preparo e aguardo de ordens

Há um juramento que foi firmado,
na pedra mais alta dos montes,
diante à um cálice de sangue
e selado com o beijo do anjo da morte.

Marchemos, marchemos!
até nossos pés sangrarem descalços
sobre a trilha da floresta de fogo.
Quem não foi parido da luz
que não se lance neste jogo!

Ainda há pouco dormiam os sonhadores
do século.
Muitos deles acordaram agora e abriram
as janelas de suas grutas.

Enxergaram fogo, sangue e enxofre
que brotavam da Terra como capim.

Estes pensaram: "Eu tive um sonho...
E agora esse sonho acabou para mim."

Outros desses sonhadores atravessaram

a soleira de suas grutas.
Enxergaram o mesmo dos demais sonhadores.
Porém gritaram:
"Acorde, minha trombeta! Minha arpa e minha lira, acordem! 
O prelúdio do combate já foi iniciado
Daremos início ao Tributo de Guerra"

Os poetas de batalha foram chamados
Havia uma mesa para cada um deles
em um salão enorme feito de ouro.
Não havia tinta para versos. Não
havia leitores.

Mas havia sangue de tinta

E assim se iniciou o Tributo
cujo conflito ainda se estende.
Pois se preservam em linhas infinitas
nas testemunhas da vanguarda da cura
onde ainda há muito à ser feito

Onde ainda há... muito à ser... feito.

Pequenas gotas de mim

Lembro-me da descoberta mais dolorosa
da minha infância, no extremo da 
minha mão.

A dor do corte
Da navalha afiada
que cortou a pele macia dos meus dedos
quando eu tinha apenas nove anos.

Descobri o sangue que havia em mim
E que correu de gota em gota os
cômodos da minha casa.

O corte no meu indicador
Me fez lembrar das carnes de açougue
que eram fatiadas por terçados.

Me vi pendurado naqueles 
ganchos cobertos por ferrugem

Aquele sangue era eu
Eram pequenas gotas de mim.

Meu pai limpou o sangue das lajotas
com álcool etílico.
Senti o cheiro de uma perícia criminal
vindo diretamente do chão

Eu sabia que não iria morrer.
Meu pai limpou meus dedos.
com água corrente e sabão.

Cobriu meu machucado com um band-aid
E me afastou da navalha, mantendo-a longe
de mim, como se faz com os alcoólatras.

Nunca mais quis enxergar uma navalha
em toda a minha vida.
Certas coisas é melhor não descobrir.


terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Metrô City Blood


Leonardo Dillen adorava as imagens que seus pais lhe mostravam do metrô de Tóquio, dos letreiros luminosos da Times Square e da caipirinha transbordante das taças de cristal de Rota 66 (famoso bar de botequeiros natos que para lá se dirigiam em busca de novos sabores em seu cotidiano amargo). Não era amante de bebidas alcoolicas, entretanto. Tinha apenas nove anos. Gostava, na verdade, da natureza nua das ruas. E, na maioria  do tempo, podia apenas sonhar com ela. Desejava, é obvio, não sentir-se atado como um condenado na cela mobíliada da seu quarto de papel de parede azul- claro e onde permanecia por vários anos de solidão intensa devido à graves motivos de saúde. Leonardo era portador de uma leocemia já pouco avançada e que deixava seus ossos em estado de penosa fragilidade. O anos que passou no hospital publico, sobre um colchão mofado de uma cama triste, Leonardo nunca tirou das lembranças, pois as memorias mais tristes são sempre as mais fortes. E, durante esse período, Leo não precisou afastar-se de nenhum amigo. Nunca possuiu nenhum. A doença o isolava dos outros como a lepra também o faz com o pobre coitado que foi por ela tomado. Assim, sua solidão passou a ser seu companheiro fiel e os sonhos tornaram-se seus remédios diários para o vazio de seu mundo e de sua esperança falida.       


O tempo não contribuía em nada para que seu corpo ganhasse, ao menos, um novo impulso saudável. Quase não conseguia manter-se sobre os próprios pés de pele macia, necessitando de duas muletas para auxiliar lhe na difícil tarefa de efetuar passos quaisquer. A cada metro à frente que suas pernas avançavam, para ele, se conjeturava um milagre e, às possibilidade de conhecer sozinho as vielas de seu bairro, dava por  expectativas vagas e remotas.         


Um dia, que surgiu em seu animo como o mais sublime de todos, convidaram o garoto à passar as férias numa cidade vizinha que seu tio habitava. Não podia ninguém, todavia, acompanha-lo na viagem. Leonardo iria sozinho... e estava totalmente feliz por isso. Iria, pela primeira vez, desenvolver em si a iniciação alegre de caminhante independente. Se encontrava com ânsias de explorar, finalmente, o ar livre das ruas e ruelas urbanas sem a vigilância incomoda de algum parente ou “protetor”. A preocupação, entretanto, tomou a consciência dos pais de maneira intensa e até agonizante. “Não sei se devemos. É perigoso”, disse o pai de rosto pálido e coração aflito. A mãe, alma de libertina, disse: “Por que não? O garoto deve sair. Conheço vários com seu mesmo problema e que caminham livremente por essas bandas e até além. Acho que não devemos deixar nossas rédeas sufocarem o garoto.” Tais palavras se estenderam pela teia das horas e entraram na escuridão da noite. Passou-se os minutos, mas a inquietação de Leonardo permaneceu de guarda em sua alma tão jovem. E, sentado soturno ao sofá, vendo as muletas no canto da casa, questionou em qual versão de seus dias a felicidade poderia estar. Seriam as muletas as testemunhas eternas e únicas de seu sofrimento intimo?  Ouvia, o garoto, as vozes do asfalto e do chão de terra badita do mundo lá fora que pareciam dizer: “Venha. Somos seus servos, amigos e além. Venha. Um mundo real e fascinante espera você aqui”. 


Temeu ouvir a melodia amaga da negação dos pais virem-lhe até os ouvidos, estraçalhando-se toda a esperança clara de alegria que ainda lhe poderia germinar. Ao ver os progenitores lhe aproximarem o semblante de incerteza e temor, contemplou seus rostos entreolharem-se angustiados e vagarosos e, então, ouviu um “sim” frágil partir dos lábios paternos e prosseguindo: “Mas tenha cuidado. Ligaremos constantemente ao seu tio, perguntando por você.”. O interior de Leo foi tomado pelo banho do aviltado jardim das delicias e, em seu espirito moço, viu nascer, ineditamente, o luz clara duma arvore feérica. Não livrou-se totalmente da dor de estima por possuir um corpo tão debilitado, mas, naquele instante, sentiu-se como se a carne que lhe cobria os ossos já não possuíssem importância alguma diante dos fatos. Leo viajaria sozinho e conheceria o mundo com quem tanto tomou vãos devaneios.      



Dentro de dois dias, se encaminharam os pais do garoto (e o garoto) à velha estação de metro da cidade. Com passageiros diversos, de tão variados destinos, Leo se surpreendeu com a estrutura daquele estabelecimento metálico que, até então, havia só conhecido por meio de fotografias velhas. Surpreendeu-se com os guichês envidraçados, com o olhar sério dos seguranças e orientadores de embarque, e com o grande volume de malas das pessoas que entravam naquelas enormes serpentes de ferro. Deparou-se com a correria, ás vezes histéricas, dos indivíduos que carregavam nas costas as coisas que havia escolhido para partir. Leo possuía apenas uma mala de vermelho negro que guardava as poucas coisas que sempre lhe pertenceram na vida: roupas leves para o clima da cidade, livros de bolso com ótimas prosas e versos, escova de dente, roupas íntimas e todos os acessórios da qual um garoto da sua idade usufruía. E até alguns desejos que guardava consigo foram acrescentados à novas ânsias que a emergência da viajem lhe veio acrescentar. Lágrimas secretas se expurgaram dos olhos brilhantes de sua mãe e, quando o metrô de Leo irrompeu na estação, ela, como que por impulso automático, correu ao seu único filho e enlaçou aqueles braços maternos naquele corpo pequeno. O menino se viu sufocado naquela maré de suspiros e murmurações trêmulas, mas, considerando a realidade humana, os pais são elementos únicos do universo. O pai, por sua vez, ofereceu um abraço mais modesto, mas não menos melancólico (e saudosista). Disse um leve “te amo muito” e, naquelas palavras, Leo não pode evitar beber da fonte de uma sabedoria interna e, portanto, nem muitas vezes visível aos medíocres. Percebeu, que muitas vezes, o amor paterno é o verdadeiro amor sincero, embora conspurcado pelos estereótipos sociais, e que o amor materno, muitas vezes, é um teatro instantâneo, já pronto, com o qual os filhos se iludem, devido à grande hipocrisia que ai se inculta por convenção das dissimulações sociais. Saber que permaneceria longos dias sem a presença daquele casal que aprendeu a amar (e, não raras vezes, a nutrir ódio) lhe alimentou uma certa semente de tristeza. Mas, para descobrir novos universos, muitas vezes, precisamos nos perder para além das estradas do convencional. E Leo tinha completo conhecimento disso.            

Deu o menino o último adeus aos pais e adentrou, zeloso com suas muletas, naquela cobra de metal reluzente junto com uma massa de pessoas que, opostamente à ele, não estavam nada contentes. E, ao partir, o metrô não permitiu que o menino visse mais ninguém lá fora, exceto as paredes escuras de um túnel macabro e os corpos grandes das pessoas do interior do transporte. O veículo estava lotado e, de pé, o menino não conseguia ter força suficiente em suas mãozinhas para segurar as barras de apoio, juntamente com suas muletas. Assim, observando a enorme dificuldade do garoto, um homem negro levantou-se de seu acento e o ofereceu ao petiz. Leo obviamente aceitou e, com um sorriso infantil, que sempre encantava à todos com aqueles pequenos dentes de leite, agradeceu ao homem. O negro retornou o sorriso ao jovem, aparentando um admiração profunda pelo menino. Já sentado, Leo começou a esfregar as mãos para lhe amenizar o grande frio que se instalava ali. ”E ainda nem choveu”, pensava ele com todos. Tentou esquentar as bochechas com as palmas das mãos e, nesse instante, fortuitamente, notou que dois homens fortes, grandes e barbudos, sentados num canto, o observavam com atenção. Os homens conversavam de esguelha entre si, enquanto lançavam olhares constantes ao garoto. Leonardo, obviamente, sentiu grande desconforto. Nunca se sentira assim. E descobriu ele que não gostava de ser observado muito diretamente por estranhos, como um quadro exposto numa galeria que servia para embelezar os olhos dos passantes. Leonardo desviou o olhar dos homens, mirando-se na janela do metrô que, naquele momento, já havia saído do túnel para ceder imagens de uma cidade de grandes prédios, arranha-céus e estradas. Contemplou com encanto as nuvens de cores fortes que a aurora fazia no céu. Leonardo já havia visto esta mesma imagem da janela de sua casa e do leito do hospital onde ficara internado por anos. Mas nunca havia presenciado a beleza daquela aquarela natural da janela de uma grande locomotiva. Lhe era um encanto totalmente novo, pois a beleza de um cenário sempre pode ser renovada pela perspectiva do observador. Permaneceu embelezado, por muitíssimos segundos, com a primeira imagem do seu “novo mundo real”, pensando: “Papai e mamãe são grandes sortudos por poderem ter isso todos os dias.”. E pensou que era maravilhoso poder viajar com um cenário assim, apesar das grandes dificuldades enfrentadas dentro do metrô.     


Porém, ao retornar os olhos para dentro da locomotiva, notou que os dois homens, que tanto haviam lhe incomodado, ainda permaneciam a lhe observar incisivamente. Leo, neste instante, sentiu um incomodo ainda mais forte lhe acometer, como se uma agulha ácida lhe atravessasse a pele. Virou todo o tronco em direção à janela, desta vez abraçando as muletas, e, mirando o olhar nas paisagens (que agora pouco lhe aliviavam) perguntou-se porque tais indivíduos o fitavam muito impertinentemente. Começou a torcer para que a viagem fosse concluída o mais rápido possível para que pudesse encontrar com o tio, que estaria aguardando pessoalmente sua chegada.           

O metrô chegou a outra estação por volta das nove e meia da noite. Leonardo, por sua condição de debilitação física, aguardou a saída de todos os passageiros para, só após, deixar o veículo andando zelosamente com suas muletas fieis. Pegou sua mala com o guarda-bagagens e, assim que o comboio partiu com uma nova leva de passageiros, o menino notou que não havia quase ninguém na estação. E, olhando em volta, notou com tristeza que seu tio ainda não havia chegado. Altamente cansado, o garoto sentou-se pesarosamente num banco que ali havia, pousando as maletas num canto e começou a aguardar. Na tranquilidade da noite, deixou o olhar pousar nos trilhos cobertos pelas sobras e ferrugem, observando uma ordinária embalagem de doces se arrastar pela plataforma. Espantou com as mãos algumas moscas que estavam voando sobre sua cabeça e, ao sentir o impacto de uma forte corrente de ar gélida, enfiou as mãos pra debaixo da jaqueta e começou a esfregar o próprio dorso com aquelas palmas semifrias. Olhou para o céu e ao notar que era noite fechada, não duvidou de que iria chover. Repentinamente, naquela tranquilidade, naquele silencio, suas pálpebras começaram a se tornar pesadas e um véu de sonolência começou a envolver-lhe fortemente. Como se uma bigorna estivesse sendo enterrada em seu crânio, sua cabeça começou pender, de forma que seu queixo aproximava-se do peito. Sentiu como se uma toalha invisível envolvesse o ruídos externos de forma que, de olhos já fechados, uma enorme som abafado surgia dentro de sua cabeça. Já não vendo nada, só escuridão, o menino estava indo lentamente entregar-se aos braços de Morfeu.      

Neste instante, sentiu uma mão grossa afagar-lhe os ombros, dizendo-lhe:   


//Cuidado, garoto. Uma estação não é um bom lugar para dormir.    



Despertando espantado, Leonardo pensou que pudesse se tratar do vigilante da estação. Porém, sua surpresa foi muito maior. Ao virar-se, percebeu que tratava-se de um dos homens grandes (alto e forte) que o haviam observado no interior do metrô. Ao deparar-se com aquele rosto barbudo, Leo sentiu como se um enorme bloco de gelo houvesse sido arremessado em seu coração e destruído uma de suas espinhas. E seu temor elevou-se ainda mais quando o homem pediu:      

//Posso sentar ao seu lado?         


A palidez dominou o menino. Sentia que uma forte paralisia havia pousado em suas mãos e que a dormência havia envolvido suas pernas. Um forte formigamento lhe tomou a nuca e, antes que o menino pudesse ao menos mover os lábios, o homem sentou ao seu lado com um enorme sorriso ao rosto. O individuo virou-se para o menino (gesto que fez o petiz gelar os ossos), apoiando o cotovelo no encosto do banco e a bochecha nas mãos, enquanto observava Leonardo com peculiar atenção.  Leo nada compreendia daquilo, mas o medo nele era, sem duvida, totalmente compreensivo. O menino fitou o chão, não ousando desferir qualquer palavra ao estranho, enquanto sentia um novo formigamento surgir nas bochechas. Com um voz de encantamento e até mesmo ternura, o homem disse:        

 //Você é muito bonito, sabia?         

Oh, Deus! O que ele quer comigo? Por que ele me disse isso?”, pensou com a sua parte de sua consciência que ainda tinha coragem. O homem, então, prosseguiu dizendo:            


//Alguém já lhe disse alguma vez que você é bonito?     



Leo sentiu um grande asco ou repulsa crescer em seu interior, não sabia extamente o que era, mas tratava-se de algo  que lhe preenchia de grande incomodo. O petiz assim, pegou suas muletas, ergueu-se de chofre, sem responder à pergunta, e, carregando sua mala, começou a caminhar para a saída da estação. Deparou-se, então, repentinamente, com um segundo homem alto, forte e de olhar penetrante. Era o segundo homem que havia importunado a viagem de Leo com olhares incômodos e até inconvenientes. Agora, o outro estranho encarava o menino com um semblante de esfinge e um sorriso assombroso que arrancou profundos suspiros do petiz. 


Aproximando-se dele à passos lentos, o indivíduo balançou a cabeça em sinal em sinal de não, com uma expressão provocadora no rosto e disse: 

 //Seus pais nunca lhe disseram que não é educado deixar as pessoas falando sozinhas? 



E neste instante, por um impulso completamente advindo de seu instinto infantil, o garoto sentiu sua repulsa preencher ao máximo seu interior tão pequeno. E, forçando reunir forças em suas pernas e braços nas muletas, tentou correr rapidamente para fora dali. Neste interim, deixou sua mala cair no chão da fria plataforma e as fortes mãos musculosas dos homens envolveram- lhe as axilas. Também sentiu uma outra mão quente e suada cobrirem-lhe os lábios, de modo que, sentindo um forte ardor e amargor na boca, o garoto não pôde exprimir sequer  um som. Moveu-se bruscamente de um lado à outro, na tentativa de livrar-se das amarras humanas, enquanto um suor frio lhe descia a tez  e sua mente questionava: “Oh, Deus! O que eles querem comigo?!”. Sentiu ambas as muletas lhe saírem dos braços e seu pequeno corpo infantil ser arrastado pela dupla de fortes músculos até um canto sombrio e fechado da estação. Observando o forro sujo, as paredes pichadas e um amplo espelho embaçado, Leo reconheceu o banheiro masculino.  


Suas costas frágeis foram jogadas contra o chão do recinto e, com bastante furor e respirações rápidas, os homens despiram as roupas de todos ali. Com as camisas e calças jogadas longe, o menino sentiu uma enorme sensação de frio gelar-lhe a pele em contato com o chão e, devido ao enorme cansaço que ainda lhe dominava, não possuía forças para sequer mexer os braços. E foi ali, naquele cenário de asco e náusea, com odor de suor masculino e ralo fétido, que os dois homens pousaram no corpo de Leo o instrumento de seus mais profundos tormentos. O suor se juntou a sêmen, ardor se juntou à fúria, e o menino se juntou forçosamente ao véu do pecado. Deitado ali, com enorme dor nos ossos, sentiu a face formigar como que atingido por saúvas e, neste instante, lhe doeu o peito, como se seu tórax fosse puro chumbo. Não conseguia mais sequer mexer as pernas. A dor se transmutou em paralisia. Sua voz sumiu em sua garganta e lágrimas quentes lhe romperam dos olhos. O ardil no peito tornou-se mais denso e seu sofrimento alagou em seu coração. Sentiu um líquido espesso lhe vazar entre as pernas. Era um líquido escuro, vermelho e soube imediatamente que era seu. 

Neste instante, então, os homens se levantaram, juntaram suas devidas roupas do chão e as vestiram rapidamente. E um deles, antes de ir embora,  beijou as faces molhadas de Leo (que, de olhos fechados, tentava sufocar as lágrimas e a repulsa) e sussurrou:

//Desculpa, garoto. Não queríamos nada de mal à você. Sinto muito. 

E assim eles deixaram o recinto, de modo que o som de seus passos foram se arrefecendo até sumir. O garoto, por sua vez, permaneceu com fortes dores no corpo e na sua doce alma juvenil que, agora, era puro fel. Não sabia ele se devia abraçar tomar os arrependimentos pela viajem que o levara até ali. Não ousou questionar-se da validez de sua ânsia juvenil. Mas penas rezava (ou orava) para que fosse encontrado. E foi. Um segurança estagiário de trinta anos se horrorizou com seu estado corporal e espiritual. Logo após, Leonardo enfim se encontrou com seu velho e preocupado tio, mas só após relatar todos os detalhes do caso na delegacia próxima dali.   

Nos dias que se seguiram ao fato, o jovem soturno manteve seu cordão de isolamento mais intenso que nunca. O tio esforçou para, durante a estadia do sobrinho, encher-lhe o máximo possível de felicidade e alegria. Não tiveram, tais esforços, efeito algum. O menino não queria mais sair para parte alguma. O quarto do tio passou a ser o novo refugio daquele petiz ultra melancólico e as muletas de metal enferrujado, que auxiliavam as pernas doloridas do garoto, passaram a ser o mais querido (e talvez o único) amigo a quem Leonardo passava horas inteiras em companhia, abraçado à eles. Seu emagrecimento notório tornou-se preocupação enorme para o irmão do pai daquele  pequeno ser. Da mesma forma, os pais de Leo descumpriram o acordo forjado com o filho, de entrarem constantemente em contato com o ele. À essa falta, os progenitores lançaram o argumento de “esquecimento por força maior”, em decorrência de motivos inesperados e que requeriam imediata atenção. Telefonaram só muito tempo depois, para receberem a notícia, por meio do melancólico tio, que o garoto foi encontrado sem vida no quarto de hóspedes, de bruços no chão, com sangue escorrendo entre as pernas e uma mensagem vermelha que escrevera nas paredes do quarto por meio das unhas:  

Tinham razão, fotografias vãs. O mundo é um lugar incrível. Agora sei disso, pela maneira esplêndida pela qual as pessoas amam umas às outras. Deus abençoe esta terra.” 


(Crédito da imagem: Henrique Luiz)

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Gramática da Morte

Palavras, palavras!
Palavras malditas!

Vejo-as em toda a parte
Tento afoga-las nas sombras da embriaguez
E as palavras me afogam em delírios de mármore.

Tento combate-las jogando-as umas contras
as outras, no vão daquela parede de gêsso.
Mas, no fim das contas, não compreendo
o que eu próprio fazia em minha ilha recortada de letras.
Para que recorta-las? Eu as fiz. 
Eu as quis.

Palavras, palavras!
Palavras sangrentas!

As fronteiras de facas são dez mil orações vazias
O inferno de Dante são mil conjugações de pretérito perfeito.
Tua crase alongada é um risco no céu
Subordinadas são minhas lições.

Coordenadas vizinhas não creem em ilusões
Topônimos de vinho são tuas algemas.
Sintaxe em linha reta numa estrada, perto de um bar
Morfossintaxe lenta prossegue em mais mutações.

Contemplo aquela oração me encarando de longe, no deserto

Parece flertar comigo
Convidando-me para transarmos e fazermos cada vez mais frases.

Suas letras maiúsculas parecem sérias demais
A exclamação, ao final, parece um major militar.

O palanque sou eu, para a construção do morfema.

Meu cérebro busca uma sinapse na gramática do Bechara
Deita em suas flexões e abusa do rosto de suas sentenças.

O sujeito foi eu retirar-me da frase.
Nunca entendi seus signos.

sábado, 29 de novembro de 2014

A Odisséia Ébria


A exaustão da Terra havia me alcançado, havia me domado e tornado-me seu prisioneiro. Em um momento de descuido, conseguir romper com as correntes e pulei a cerca para o jardim desconhecido. Já em terra nova, caminhei em nuvens de seda, nuvens de borracha, pontes de ar. Eu vi o céu azul-celeste contrastando com afluentes de rosas, roxos, verdes e outros tons. Me fiz de andarilho pelo arco-iris do céu, enquanto tudo termina em cinzas no solo dos mortos. Cada vez mais perto do fim, o arco-iris foi se tornando mais quente. Suas cores estavam mais vivas. Eu estava mais vívido que um parede de luz alcoólica. Uma parede de algodão colorida e repleta de lágrimas de luzes. 

O odor de álcool. 
O odor da cerveja. 
A dor da certeza. 

Enfeitiçado como um néscio, fui engolido pela luz. Cuspido pelo fogo, quando Deus me deixou entrar. 

Me tornei um deus duvidoso. Quem iria limpar minha cama? Quem iria varrer o meu templo? Quem iria avivar minha chama?

Me tornei a solitária energia do Rock e a melancolia dos fados portugueses. Em bares com putas e cafetões, experimentei o sabor ardente do pecado original. Com homens bêbados em bares, me inebriei em meu nirvana sozinho, entre outros deuses da música e da solidão. Senti o enjoo do vinho e partes do meu fígado se espalharam em uma calçada de giz.

Senti os cigarros dos mafiosos formarem cortinas de fumaça no papel de parede dos pubs. Presenciei advogados contestando seus próprios argumentos de incisos, enquanto bebiam cerveja belga tal como leite. Homens de meia-idade fodiam com garotas de dez anos e mães vendiam partes dos seus filhos para universidades de medicina. A face hilariante do orgulho e desprezo dos pobres estampavam as ruas, enquanto pensavam que animal de estimação assariam em sua panela.

Coisas boas surgiam das sombras e malefícios nasciam na luz.

Fui empurrado para o Templo dos Deuses de Cera e ele se chamava "Coração dos Pobres". Quem não conhece a deficiência desses deuses que então se arremesse nesse templo. Eu presenciei a risada dos mendigos, enquanto apenas sonhavam com mesas de vinho.

Haviam pessoas cheias quando na solidão e vazias na presença de outros. A companhia da felicidade do som de si é a verdadeira fé. Isso é algo que morrerá conosco: a fé.

A fé existe para revelar o futuro e  a verdade suprema. O verdadeiro presente que Deus deixou para trás.

Pois no fim, sabemos que é tarde demais. Sempre foi e sempre será... tarde demais.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

O homem da alma de ferro

Ele sorri para mim todos os dias, quando passo próximo à ele às oito da manhã, e permanece sentado em frente à sua humilde casa (com janelas quebradas, paredes furadas) em uma cadeira de plástico e, no rosto, um sorriso de dentes amarelos que permanece estendido até às onze da noite. Ele já é um homem avançado em idade: tem setenta e um anos de vida e trinta de muletas. É aleijado, embora andasse (com muita dificuldade). Adora crianças. Sempre o vejo com algum minininho ou minininha nos braços, apontando, alegremente, para algum elemento que sempre fascina as crianças: uma borboleta,um felino que corre atrás de ratos ou um cachorro doido que simplesmente perseguia motos ou carteiros. Mas nunca se soube que ele tivesse filhos e nem, portanto, netos. As crianças que o cercam eram, certamente, de amigos, vizinhos ou parentes.

Eu nunca o conheci muito profundamente. Ele era só. Sem pais, conjugue, nada... Chegou a conhecer o escritor semi-recluso Haroldo Maranhão, mas foi há muito tempo. Agora ele é só. E, sendo só, sua felicidade era tanta que, surpreendentemente, não suportava guarda-la apenas para si. Tinha necessidade de partilha-la. Partilhava-o através de um sorrisso, de um "bom dia", ""boa tarde" ou "boa noite". Em frente à sua casa, havia uma pilha que lembrava um mini ferro-velho. A maioria dos entulhos eram grades. E essa era a profissão dele: um fazedor de grades. Alguns diziam: ferreiro. Tanto faz, quanto tanto ferro. Ele trabalhava com soldas, com metal de depósito e metal da alma. E, enquanto possuía saúde, seu emprego era o recheio e o emprego da sua vida. Com a descoberta da osteoporose em seu corpo por um médico velho, o fazedor de grades foi compelido à abandonar a sua profissão. As grades que fazia no passado, ajuntou (reuniu, não sei qual o melhor termo) em frente a sua casa, tais quais vigilantes, amigos porteiros, família.

Desde então, a profissão do fazedor de grades passou a ser o descanso constante emsua cadeira de plástico, em frente à sua casa, e a distribuição de sorrisos e gentilezas para amigos e vizinhos.

Sempre que alguém fala sobre o fazedor de grades e afirma que ele entregou-se à aposentadoria, eu nego e afirmo veementemente que ele apenas mudou de profissão. Agora, ele se tornou um fazedor de sorrisos.