domingo, 14 de fevereiro de 2016

A Piscina Escarlate

O Orfanato Midian para Meninos era um lugar capaz criar encanto no mais perverso dos corações. Cada cama, cômodo, janela, chinelo e cheiro de roupas de crianças na flor da idade podiam atravessar as narinas dos piores malfeitores e torna-los novamente cordeiros do universo infantil do qual já haviam há muito se afastado. Cada pilar do orfanato (já um tanto desgastado pelo tempo) testemunhava diariamente a correria que os meninos faziam nos corredores em busca de um brinquedo perdido, uma página de caderno rasgada, uma chinela perdida no jogo de pira ou qualquer outra coisa.

Ás vezes, um choro irrompia em seus inocentes e imaculados rostos, tornando ainda mais tentador o impulso de apertar aquelas bochechas rosadas e macias com nossos dedos dobrados. Todavia, aqui e ali se espalhavam garotos que ainda gozavam do brilhante sol da alegria pura e se viam afastados da amargura em que adultos se afundavam todos os dias.

Em seu doce universo, aquelas crianças eram donas de si, imperadores do mundo, e faziam de caixotes de madeira suas tribunas, de toalhas de mesa suas capas de super-herói e de suas vozes de veludo as suas flautas de Hermelin, que usavam para conversar com seus amigos imaginários. Quando possuíam medo de algo, o enfrentavam até serem eles próprios (os orfãos) dignos de temor. Quando tinham medo de tomar banho, ameaçavam o chuveiro ou a banheira até torna-los servos fieis do "pequeno imperador-criança".

Quando temiam uma matéria escolar, a estudavam à fundo ao ponto de se sentirem especialistas no assunto. Quanto às funções de cada um, mesmo sendo crianças, possuíam várias. Alguns passavam trotes telefônicos, outros, trajados de médicos, faziam cirurgias em algum boneco oriundo de uma guerra terrível num país longínquo. Outros já escreviam poesia e alguns simplesmente brincavam de criar universos paralelos.

Todavia, nem todos os meninos do Orfanato Midian possuíam intenções tão puras e inocentes naquele ambiente tão alegre. Em um dormitório isolado na ala oeste, sempre era visto um menino magro, de bochechas roseas, cabelos lisos e castanhos e um pequeno caderno de anotações na mão esquerda, acompanhado de uma caneta na mão direita. Esse menino, o mais tímito de todos, possuia nas letras seus melhores amigos e na prosa das ficções infantis seus melhores companheiros imaginativos. Triste, sempre triste, ele parecia uma permanente incognita aos outros colegas que o viam, quando não raramente abraçado ao seu caderno, sozinho num canto escuro, deitado no chão e fitando o teto. Ele, em eventuais momentos, tendia a conversar com sombras e colecionar fotografias. Especificamente, fotografias de praias vazias. A maioria dos livros que lia se passavam em ilhas desertas, em paraísos aquáticos, de água cristalina e com um sol vermelho-sangue.

Em seu caderninho ele anotava os sonhos que sempre se repetiaem sua cabeça, quando caia em sono profundo: sonhos com cadáveres de adultos mortos, crianças mortas, pessoas mortas de todas as idades. E de tanto se repetirem, acabaram se tornando seus sonhos preferidos, de tal maneira que, algumas vezes, ao sonhar com isso, um sorriso malicioso crescia em seu rosto. 

Seu devaneio maligno mais grandiloquente incluia uma piscina gigantesca que transbordava em sangue e com os cadáveres de todos os seus amigos mergulhados em caldo rubro e empilhados uns sobre os outros. O Orfanato Midian realmente tinha uma piscina gigantesca, que geralmente se encontrava vazia, e se localizava no canto mais afastado do orfanato. E com o devaneio homicida crescendo cada vez mais em seu coração, o menino pegou sua caneta e escreveu em seu caderninho: "Não posso perder tempo". Assim, guardou o caderninho junto com a caneta dentro de um espaço debaixo do assoalho de seu dormitório, se ergueu e começou a andar.

Caminhou até o refeitório do orfanato, onde havia um lindo garotinho de bochechas rosadas, cabelos louros encaracolados e camisa vermelha. Este estava sentado junto à uma mesa, montando peças de Lego. O "garotinho malvado" chamou o loiro e este, por sua vez, parou o que estava fazendo para olhar o outro.

"O que é?", perguntou.

"Quero te mostrar uma coisa", respondeu o pequeno malvado, "Vem aqui"

E o menino do Lego se ergueu e começou a seguir o pequeno malvado. Os dois começaram a caminhar sem qualquer interceptação até o canto mais afastado do orfanato. Era dia de feriado e boa parte dos funcionários havia sido dispersada de suas atividades, exceto o diretor da instituição (que nunca se retirava de sua sala). Assim, os dois meninos se encontravam praticamente livres naquele dia.

Eles entraram sem qualquer preocupação ou dificuldade na escura área de natação e, ao acenderem as luzes, encontraram um apanhado de lixo amontoado num canto junto a uma pá e uma vassoura velha. Mais à frente havia uma enorme piscina sem água e sem raias. Ambos os garotos começaram a se aproximar da piscina. Num determinado trecho, o menino malvado parou e ficou observando o menino loiro aproximar-se da piscina. O menino do Lego, olhando para o fundo da piscina vazia, perguntou para o outro sem virar-se para ele:

"Você vai encher essa piscina?"

"Vou sim. E vou começar com você", respondeu o petiz perverso, retirando uma navalha afiadíssima do bolso da calça e, colocando-a em volta do pescoço do loiro, cortou as cordas vocais dele. Este apenas sentiu o sangue descer até o estômago e pulmões, começando a golfar como um porco. O garoto malvado empurrou, então, o orfão loiro para o fundo da piscina e foi possível ouvir o som do crânio deste se quebrando ao bater lá embaixo. O pequeno perverso olhou da borda da piscina para seu  cadaver inaugurau e para o sangue escuro e espesso que escorria dele, que se espalhava pelo piso do fundo. Pensou: "Foi um bom começo. Mas eu preciso de mais, muito mais, se eu quiser ver essa piscina cheia, transbordante."

O garoto, assim, caminhou até a pilha de lixo que estava amontoado no canto esquerdo e pegou um pedaço de papel usado. Usou o papel para limpar o sangue de sua navalha e voltou a guarda-la no bolso de sua calça. Andou até a saída da área de natação e desligou a luz antes de sair. Achou desnecessário, pois ninguém nunca entrava ali, mas o garoto não queria facilitar para eventuais vacilos. 

E já sabia ele, mentalmente, quem seria a próxima vítima. Ou melhor, suas próximas vítimas (assim mesmo, no plural). Tratava-se de dois irmãos gêmeos, na idade de oito anos cada um e que tinham, em comum, a paixão pelo mesmo esporte. Chegando na quadra poliesportiva do orfanato, o pequeno malvado visualizou os dois irmãos numa partida acirradíssima de tênis de mesa (chamado popularmente entre eles de "ping-pong"). Suas atenções estavam totalmente voltadas pra disputa, com um sorriso nervoso que lhes acompanhavam no rosto e o suor quente que descia da raíz de seus cabelos ruivos e encaracolados até o queixo.

"Agora que os vejo, estou com medo de fazer qualquer coisa à eles. Parecem tão felizes", pensou o pequeno malvado de si para si mesmo, começando a sentir, no âmago de seu espírito, uma pontada de receio. Entretanto, logo após, refletiu com cólera nos olhos: "Mas, por outro lado, também tenho o direito de ser feliz. E além do mais, preciso terminar o que já comecei." 

Assim, resoluto, o pequeno malvado deu um assobio que cortou o ar tão bruscamente que atraiu de imediato a atenção dos gemeos. Quando os irmãos olharam curiosos para o menino perverso, este lhes disse: 

"Desculpa atrapalhar a partida de vocês. Mas vocês podem vir aqui e me ajudar numa coisa? Por favor"

O gêmeos, então, disseram que sim e atravessaram a quadra na direção do pequeno vilão e seguiram ele até uma área em que havia cordas amarradas em canos grossos próximo às paredes. O garotinho malvado disse:

"Já faz quase meia-hora que estou tentando dessamarrar essas cordas, mas não consigo. Dessamarrem elas pra mim, por favor"

Os gêmeos então, gentilmente, começaram a dessamarrar as cordas. Enquanto faziam isso, o pequeno perverso veio por trás deles com um machado e enfiou a lâmina com força nas costas de um dos meninos. Esse menino gritou bastante e depois o pequeno perverso quebrou o pescoço dele com as mãos. O corpo ensanguentado dele caiu no chão. O outro estava prestes a correr, quando o pequeno perverso enrolou a corda em seu pescoço e apertou a corda, enforcando-o, até mata-lo. 

Com os dois mortos, o assassinozinho pensou em como carregaria os corpos deles. "Ora, muito simples", pensou o pequeno, tendo uma ideia em sua mentezinha doentia. Ele pegou a corda que havia usado para enforcar um dos garotos, amarrou em torno do tornozelo dos dois e simplesmente começou a puxa-lo, como se puxa um carrinho de feira. Puxou até a borda da piscina e depois desamarrou a corda do tornozelo dos gêmeos e empurrou os cadáveres para a piscina.

Ali, da beira da piscina, ele contemplou os corpos dos gêmeos formando uma poça de sangue. Achou dislumbrante aquela visão, como se estivesse diante de uma pintura renascentista. Passou a mão pela testa, limpando o suor que começava a surgir em seu rosto. Ainda faltava muito para a piscina ficar cheia. E o garoto perverso foi atrás do que faltava.

Um a um e de modos diferentes, o menino perverso foi tirando a vida de cada pequeno e jogando seus corpos na piscina que, aos poucos, ia transbordando. 

Após alguns minutos, faltava apenas matar um único órfãoUm garoto de cabelos pretos, com sardas no rosto, chamado Matias, estava se escondendo pelo orfanato. Ele silenciosamente estava acompanhando a missão de seu amigo cruel em encher a piscina.

"Como ninguém consegue parar esse muleque? Não é possível. Será que o diretor não está vendo nada?", refletia Matias consigo mesmo. Ele cautelosamente foi subindo as escadas até a sala do diretor, que ficava no último andar do bloco D.

Matias entrou na sala. Ela estava escura e a única luz que vinha da janela aberta aos fundos iluminava o ambiente. Matias viu a cadeira do diretor, virada em direção à janela.

//Diretor, o senhor precisa fazer algo!/disse Matias, quase clamando/ Aquele muleque esquisito do dormitório oeste está matando os órfãos e juntando os corpos deles na piscina do orfanato!

O diretor não respondeu. Permaneceu em silêncio.

Matias ficou raivoso e então disse:

//O senhor não vai fazer nada mesmo?! Vai deixar ele matar todos os meninos?

Mais uma vez, o silêncio permaneceu e o diretor continuou imóvel.

Matias, agora bufando, andou à passos largos em direção à cadeira do diretor.

//O senhor não vai me responder?!/gritou Matias /O senhor precisa fazer alguma co...

Matias, então, pulou para trás. Seu rosto foi tomando por um forte espanto e medo ao ver que o diretor estava morto, com uma faca de cozinha enfiada no peito.

//Meu Deus do Céu!/disse Matias para si mesmo.

E foi com um espanto ainda maior que ouviu:

//Não sei se Deus pode fazer alguma coisa por ele agora

Então Matias se virou na direção da voz e viu o que mais temia: garoto perverso, parado à entrada da sala. Em suas mãos, ele estava segurando um arpéu. Mas não era um arpéu comum: possuía um gancho que havia sido fundido à um punhal afiado. Ele certamente havia adaptado aquilo.

//Até que foi fácil matar ele./disse o garoto serial-killer/Adultos acreditam em qualquer coisa que uma criança conta pra eles. Eu disse para ele que queria contar um segredo. Mandei ele chegar bem perto para eu falar. E quando ele chegou perto o suficiente, enfiei aquela faca no peito dele. Você tinha que ver a cara que ele fez. Foi muito engraçado. Pra valer. O único problema foi para colocar ele sentado na cadeira de novo. Foi trabalhoso demais, porque ele é muito pesado. Mas eu consegui. Valeu a pena. Eu amei sentir a lâmina da faca entrando no peito dele. Faria tudo de novo. Mas agora é sua vez. Você vai ser a cereja desse lindo bolo de sangue que estou preparando. Ou seria piscina de sangue? Bom, não importa. Só sei que vai ser maravilhoso. E eu garanto que isso não vai doer. Pelo menos, não em mim.

O órfão assassino começou a andar em direção á Matias, calmamente.

À medida que o assassino avançava, Matias caminhava para trás. Então, Matias bateu as costas na janela aberta, já não havendo mais espaço para recuar. Quando olhou pela janela, viu que lá embaixo havia a piscina, transbordando de corpos.  

Ele então subiu pela janela e segurou-se nas bordas, de frente para a sala.

//Você não precisa fazer isso./disse Matias, bastante temeroso, para o colega assassino.

O pequeno perverso, então, abriu um sorriso cruel no rosto e disse:

//E que escolha você tem? Se decidir pular, vai cair na piscina lá embaixo, junto com os outros corpos. Na verdade, vai até me poupar bastante trabalho. Então, eu te peço. Por favor, pule.

Matias suava e tremia em sua posição. O garoto serial-killer à sua frente estava certo: não havia saída. Se pulasse, cairia no topo do monte de corpos na piscina e certamente morreria. Se ficasse na sala, o órfão assassino o mataria. De qualquer maneira ele iria morrer. Seria como pular da frigideira para cair no fogo. 

Ele olhava pela sala em busca de algo que pudesse ajudá-lo. Não sabia o que fazer. Foi então que viu um botão amarelo, no canto da mesa do diretor. Que botão era aquele? Seria uma linha-direta para a polícia? Matias não tinha ideia. Nem sabia se, àquela altura da situação, faria diferença.

O garoto perverso então, cansado de esperar, apontou o arpéu com ponta de punhal para Matias e disse:

//Já que estou vendo que você não vai colaborar comigo, então parece que vou ter que mata-lo mesmo.

Matias tremeu da cabeça aos pés. Estava tudo acabado.

//Adeus, Matias. Foi muito divertido fazer isso.

O assassino então, disparou o arpéu. Matias, num reflexo impensado, pulou para dentro da sala e acabou caindo em cima da mesa do diretor, acionando o botão amarelo acidentalmente.

O arpéu do assassino acabou preso numa roldana que estava pendurada metros acima da piscina. A roldana começou a girar e o menino perverso, que segurava o arpéu com força, foi puxado violentamente.

Seu corpo atravessou a janela e ele acabou soltando o arpéu enquanto estava no ar. O garoto assassino despencou metros abaixo e caiu bem em cima da montanha de corpos na piscina escarlate.

O impacto da queda foi tão brutal que quebrou seu pescoço e deslocou seus ombros, matando-o de imediato. Um fio de sangue começou a escorrer da sua boca e do seu nariz. Foi o último corpo da piscina.

Na sala do diretor, Matias se pôs de pé e correu até a janela. Olhou para a piscina, enquanto recuperava o fôlego. Ainda assustado, não conseguia pensar outra coisa agora: "Ele conseguiu o que queria, mas não do jeito que planejava.

Matias então pegou o telefone do diretor que estava sobre a mesa. Telefonou para a polícia e contou tudo que havia acontecido. A polícia não acreditou de primeira no que foi contado, mas depois de muita insistência decidiu dar voto de confiança no relato de Matias.

Após algumas horas, a polícia chegou ao local.

Encontraram, então, todas as evidências que compravam a história de Matias: a piscina com os corpos das crianças, entre elas o próprio assassino. Encontram também, obviamente, o corpo do diretor.

Ficaram abismados com tudo que haviam visto.

Entretanto, o próprio menino que havia acionado a polícia, Matias, não estava no orfanato. 

No dormitório onde Matias dormia, encontraram um bilhete que dizia:

"Juntei todas as minhas coisas em uma mala e estou indo embora sem destino. Talvez algum dia me encontrem. Talvez não. Independente disso, se encontraram esse bilhete, então encontraram todas as provas que validam meu relato.

Talvez um dia o orfanato Midian possa voltar a ser o que era. Mas as pessoas nunca voltam. Esse é o verdadeiro legado dos Midian: uma história que náufragou em uma piscina de sangue"