sexta-feira, 5 de setembro de 2014

O Bichano do Vizinho

   Um felino branco sempre anda com suas patas magras nos telhados vizinhos à minha casa. Eu já havia passado pela experiência de ser dono de bichos de estimação. Já tive um gato e um cachorro quando eu tinha aproximadamente, uns dez anos de idade, Era tão apaixonado por bichos quanto por livros, filmes e quadrinhos (como qualquer outro garoto). Mas, infelizmente, eu quase não permanecia em casa para cuidar dos meus queridos filhotinhos e meus dois animais de estimação acabaram tendo, para minha desgraça (e deles também) fins cruéis. Meu gato acabou entrando, despercebidamente, em uma caçamba de lixo, e, quando o lixeiro pressionou aquele botão para extrair o chorume do lixo, pôde-se perceber que o sangue do meu gato (e a alma dele) se escorreram ali juntamente. Meu cachorro, por sua vez, fugiu de casa sem ser notado por nenhum dos meus familiares e, quando corria por uma estrada asfaltada, querendo atravessar a rua (possivelmente para buscar comida ou simplesmente liberdade) ele foi atropelado por um carro que dirigia com uma velocidade altamente veloz. A única lembrança que tive dele foram pedaços de seu intestino que permaneceram espalhados no asfalto (até ser retirado pelo serviço de limpeza da Prefeitura, algum tempo depois). 
   Depois dessas experiências desastrosas e de um luto que demorei inúmeros meses para suprir (nenhum humano me fez chorar tanto quanto eu chorei por meus bichinhos). jurei a mim mesmo que nunca mais me atreveria a ser donos de animais de estimação. Mas isso não quer dizer que parei de me interessar (e principalmente de me fascinar) com eles. O bichano do meu vizinho, que comecei falando no inicio do post, foi um dos bichos que mais me deixou curioso (com um búfalo atrás da orelha). Ele era conhecido pela sua incrível capacidade de aparecer desaparecer rapidamente (nem um raio era mais rápido) e pelos seus sofríveis miados.
   Afinal: para quê despertador, quando você tem um gato faminto que lhe acorda pontualmente todos os dias às seis e meia da manhã? Para ser sincero, seus miados são constantes e ele sempre mia enquanto caminha pelos telhados das casas de todos os vizinhos do bairro. Mas, curiosamente, ele sempre faz questão de miar perto da minha casa e próximo ao meu quarto pontualmente ás seis e meia da manhã todos os dias (é claro, que no domingo isso me irrita). E, como eu afirmei anteriormente, seu miado é sofrível, insistente e não permite qualquer compreensão mais profunda. Quando ele me acorda com sua voz dolorosa, eu me levanto de minha cama, abro a janela e fico observando-o por um longo tempo com um dó covarde. Não nego que cresce em mim uma fervilhante vontade de lhe oferecer uma larga tigela de leite. Quando ele está na minha mira, eu admiro encantado seus pelos de uma cor branca tão láctea e seus olhos azuis tão claros, que penso estar em frete à uma pequena Quimera com pelos de papel. Entretanto, seu miado sofrível me faz questionar se sua queixa é realmente a fome (ou apenas ela). Ele também poderia querer abrigo do sol, da chuva. Poderia querer um novo dono, pois, possivelmente, seu antigo "companheiro" era uma criatura idiota e irresponsável. Vá lá se saber o queria o maldito gato.
   Apesar deste gato fazer visitas constantes à casa do meu vizinho, eu suspeitava seriamente de que ele era um gato de rua. Entretanto, todas as manhãs, ás seis e meia da manhã, quando ele vinha me despertar do meu (ora conturbado, ora raramente alegre) sono, ele passava a se alforriar do seu aspecto mundano para entregar-se à mim. Todas as manhãs, ás seis e meia da manhã, aquele não era mais o gato do vizinho e tampouco do mundo: aquele passava a ser o meu gato e eu o possuía em minha alma e fazia dele uma aquarela viva. 

Os Prisioneiros Tropicais: Retorno à Ilha da Solidão

   Sinto visitar um imenso porão de livros numa ilha deserta.  A ilha tem um aspecto amarelado. Seu céu é amarelo. Vejo um homem magro, de terno prateado e sem brilho. A pele dele é pálida. Tem sombras altamente escuras ao redor dos olhos (pretos, no sentido de maquiagem). Ele possui um cabelo loiro, volumoso, arrepiado. O homem é melancólico, cabisbaixo e atende pelo nome de N. Não estou mais no porão. Estou na beira dele, sentado na areia branca. Além do homem melancólico, percebo a presença de um lenhador. Este é gordo, barbudo, com chapéu de palha, camisa vermelha quadriculada e calça de cor carmesim. 

  O lenhador não sabe da existência do homem melancólico. O lenhador só corta, com sua serra elétrica, as palmeiras da praia, uma à uma, até sobrarem três. As lágrimas do homem melancólico se transformam em sangue quando tocam a areia. Areia vermelha. Confesso que nunca havia visto aquilo antes. O homem melancólico me deprime. Não posso e nem quero ajuda-lo. Estou exausto da idiotice das experiências humanas. Até a brisa daquela praia cortam o meu rosto, mas não vejo sangue algum. Depois percebo que o meu sangue está nas veias do homem melancólico. Estão em suas lágrimas. Como ele roubou meu sangue? Não sei. Nem estou interessado em saber. Quero ir embora. Dou meia volta e começo a caminhar, para ver se encontro alguma trilha que, no mínimo, me leve à outra extremidade que me isole do homem melancólico e do obeso lenhador da serra elétrica. 

   Num trecho do meu percurso, me deparo com um buraco quadrado, com bordas de madeira, no chão da praia. Lá embaixo vejo uma escuridão aterradora. "Não podemos sair", alguém diz. "Sombras estão se mexendo aqui no escuro. Somos tudo aquilo que não sabe entrar nem sair. As sombras tem vida própria...e não podemos sair".

A Ilha do Homem Invisível

 

Um dia, morarei numa ilha. Numa fazenda isolada, única, num lugar deserto. Minha casa será rústica. Quase um refúgio de alvenaria, em tijolinhos nus de tonalidade clara e assoalho de madeira de lei. Um fogão quatro bocas e, surpreendentemente, elétrico. Uma chaleira, um bule, uma mesa de madeira interiorana. Uma vitrola ao lado de uma estante de livros (pois o silencio é divino, mas a vida sem alguma música, em algum momento, se torna insossa demais). Obviamente contarei com o prazer de um cômodo, um recinto amplo e confortável, onde irei instalar a minha biblioteca particular com inúmeros livros, em inúmeros idiomas, em várias instantes de madeira à perder de vista. 

   De um lado da casa ouço mugidos: são vacas (instaladas na grama claramente verde e extensa do meu celeiro), No outro lado da casa, um homem velho, magro, de cabelos brancos, suéter vermelho e olhar profundo se encontra parado diante da minha janela de madeira, que está aberta (acho que ele abriu, pois eu sempre a mantenho fechada). Ele contempla a extensa praia de areia fina e clara e de espumosa água azul-planeta que quebram suas ondas próximas da superfície. Nenhum pássaro, avião ou asa-delta se interpõe. Esse homem olha ininterruptamente para a praia. Me surpreendo com ele, pois imaginei estar sozinho. Imaginei estar solitário da humanidade, como eu sempre desejei. Quem é esse homem? Não o conheço de canto algum. Até minha família deixou de existir. Quem é esse homem? Uma voz me alerta "Ele é o homem que tudo vê." Me sinto intrigado com isso. "Como ele pode ser o homem que tudo vê, se ele não me vê?", questiono. 

   De fato, ele não vê a mim, que estou à poucos metros dele. Para ele eu devo ser como névoa, poeira, ou uma coisa mais fina (e invisível). Então, percebo aliviado: "Sim. Estou sozinho. Estou com Deus. Ou seja, estou na luz"