sábado, 4 de outubro de 2014

Os traidores da Santa Inquisição Moderna

//Senhor Nespoh!

As palavras saiam como fogos de artificio colidindo com paredes de concreto.

//Senhor Nespoh! Não se esqueça de que temos novos amigos. Seja discreto. Não conte para ninguém que não seja de extrema confiança. Não se esqueça!


Como esquecer? Ele o lembrou dez vezes na mesma hora. Durante os minutos antecedentes, Hans Nespoh pareceu uma mula empacada no próprio tédio... até ocorrer algo interessante. Via-se numa igreja, dormindo, sob a batina de um rapaz negro e musculoso de dezessete anos. Cacete! Dizem que este negro bateu na cara de um coroinha mais novo apenas porque existiam boatos de que este era masoquista. E o coroinha mais novo, por uma questão de desejo, insultou o homem negro com palavras impublicáveis apenas para que este pudesse bater mais violentamente. Mas o negro não era nem um pouco néscio. Sabia da estratégia dele e, como era muito misericordioso, o negro não se negou a oferecer uma dose extra de violência gratuita para aquele filho da mãe que amava ver o próprio sangue jorrar. E assim o negro bateu. Sim, bateu! Bateu forte para valer. 

Aquele era o prazer da violência gratuita, algo que apenas os homens mais experientes da Terra em questão de miséria eram capazes de compreender. Para os miseráveis, para os néscios, para os esclarecidos deste mundo doente, apenas o sangue liberta. 

Mas violência, de repente, tornou-se como cocaína: um prazer culposo, que é preciso fruir apenas em lugares ocultos. Esses lugares são vastos. O mais conhecido é o quarto. Este é o lugar não apenas do sangue, mas também de lágrimas e (no caso dos homens) também do sêmen, de muito sêmen, o sêmen que substitui a cera que lustra o piso de lajotas vermelhas. Se os homens fossem mais ligados ao dinheiro do que normalmente são eles cobrariam no mínimo duzentos reais para que as indústrias de limpeza doméstica e de material escolar utilizassem seu sêmen para a produção de graxa, lustra-móveis e cola escolar. Mas enfim! O ardor por emoções desconhecidas cobre os homens como o céu cobre a Terra. “Mas é preciso algo novo”, pensou o negro. E então, este chamou o padre Eliam: um homem idoso, de cabelos grisalhos, mas com fogo que oblitera larva de vulcão. Disse-se de que o negro e o padre foram para um compartimento afastado e desocupado da igreja. Ouviu-se muitos murmúrios, gemidos e objetos sendo quebrados dentro do recinto. Ninguém quis interromper. Algum tempo depois, Hans foi incumbido de ir até o quarto e informar ao padre que a missa iria começar. Foi até lá. Quando aproximou-se da porta, já não ouvia barulho algum. Nem gemidos e nem suspiros foram ouvidos saírem daquele recinto misterioso. Hans bateu respeitosamente na porta. Não houve resposta alguma. 

 //Padre? Padre você está aí? Preciso lhe dizer algo.


O silêncio foi como navalha fria na pele de Hans. Ele atreveu-se, com a respiração suspensa, a girar a maçaneta da porta. Sentiu o trinco destravar-se na soleira. Abriu lentamente a porta e, quando se deu conta, o padre estava de joelhos na beira da cama. Sua batina parecia mal vestida e ele aparentava estar orando. Mas sequer respirava. Hans aproximou-se dele, tocou na pele fria e pálida do seu rosto e pôs a mão  no peito do ancião. Aquele idoso já não mais possuía alma alguma em seu corpo. Deu-se conta de que seu amigo negro já não estava ali. Talvez já saíra quando o padre decidiu iniciar uma rápida reza para preparar-se para a missa. Assim Hans ficou delegado de chamar a ambulância. E chamou. Logo após, foi incumbido de ir pessoalmente até a casa do coroinha masoquista para informar sobre o deprimente fato. Os outros, segundo lhe disseram , não deveriam saber. Não deveria ser criado alarde no dia em que o padre iria proferir uma missa no dia de seu aniversario. Interessante presente enviado por Deus... ou, quem sabe? Bom, já estava morto. Mas esta história ainda não acabou. 

 Quando chegou na casa do coroinha, notou Hans que todas as portas estavam abertas e que nada havia sido roubado. Entrou ele apressado, impulsivamente (não sabia o motivo) na residência e, ao encontrar o quarto do coroinha, notou que este estava nú sobre a própria cama e acompanhado do negro que, por sua vez, vestia colant de roxo. Ambos estavam mortos. Na janela estava escrito dez vezes a frase: 

Não devo cometer pecados nojentos”.


Droga!”, exclamou Hans correndo assombrado daquela casa e com uma forte náusea lhe corroendo a garganta. Ele passou mal durante várias horas naquele dia. Entretanto, logo nas semanas que se seguiram, houve uma extrema carga de felicidade que recaiu sobre a alma de Hans. Era uma felicidade que nunca se havia visto antes em sua vida, embora continuasse vivendo da mesma maneira, possuindo as mesmas coisas e tendo o mesmo ritmo de vida. Nada parecia atribuir razão a sua felicidade repentina, enquanto a paróquia ao qual fazia parte ainda travava luto pelas mortes horríveis que lhe marcaram. Alguns dias depois, um outro coroinha, da mesma igreja de Hans, mas desta vez mais velho, apareceu morto dentro de sua própria casa. Disse-se de que neste dia, um velho amigo de Hans conversava aos cochichos com outro colega, dizendo: 


//Esse Hans é maldito. Mais um de seus amantes traidores foi ao inferno hoje. Eu é que não quero mais me aproximar deste cara. Nunca mais. Nunca mesmo, enquanto eu existir. 

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