quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Entrevista com Lúcifer

Eu era um simples universitário graduado em jornalismo e havia acabado de ser admitido como redator-estagiário de um grande jornal quando esta experiência me ocorreu, tão inesperada como uma lufada de ar gélida numa gruta subterrânea. Eu estava na minha primeira semana de estágio e deveria realizar uma entrevista com uma personalidade importante e que, certamente, deveria atribuir peso ao meu currículo. Faltava uma semana para a entrega do meu trabalho ao departamento de redação e nada estava pronto. Começava a sentir o verme do desespero mordendo a minha carne nua e, quando parecia que eu deveria começar a formular uma desculpa ao redator, recebi uma chance estranha. Uma carta chegou ás minhas mãos, em papel reciclado (e com aroma de jasmins) de uma personalidade muito obscura que, embora eu não tenha convocado, mostrou-se disposto a trocar algumas palavras comigo. Era Lúcifer, o guardião-mor dos anjos decaídos. No momento que vi sua mensagem na carta, obviamente não acreditei. Achei que possivelmente fora enviado por algum colega de estágio, que se aproveitava de minha aflição para lançar-me em alguma piadinha de quinta categoria.

Todavia, ao observar a assinatura do espírito maligno, notei que não tratava-se de uma assinatura que pudesse ser propriamente humana. Pareciam signos antigos em que as letras cursivas faziam surgir lembranças de velhos mestres e sábios que a humanidade outrora possuía, com algum vão imperador de uma província de tempos remotos.  A fragrância belíssima do papel me fez pensar quão caprichoso era o anjo demoníaco e quão prepotente deveria sê-lo. Senti certa aclimatação com o aspecto primoroso que a correspondência tinha e comecei a pensar com a minha consciência se o anjo negro merecia uma entrevista de minha autoria. E quem acreditaria que eu, simples estagiário de comunicação social, tive um encontro profissional com o Grande Senhor da Escuridão, Mestre das Trevas? Eu seria visto como um lunático por todo o departamento de redação, ou então um grande mentiroso que lançou mão de um subterfúgio esfarrapado para uma simples tarefa não cumprida.

Mas, exceto Lúcifer, que outras escolhas haviam para mim?  Deveria eu arriscar um encontro com o anjo caído ou sabia que me restaria entregar apenas um folha em branco ao meu chefe, junto com uma caixa de chocolates. Assim, vesti-me com roupas de profissional renomado (embora eu ainda não alcançasse o nível) e coloquei, no bolso do terno, uma rosa branca para mostrar meu respeito (ou medo) para com o príncipe maligno. Peguei meu bloco de notas e canetas de tinta preta, tomei uma forte dose de café puro e, controlando toda a ânsia que se explodia em mim, parti para o local do encontro que estava descrito na carta. Curiosamente, notei que não havia um horário especificado para o compromisso marcado na carta. Porém, como Lúcifer era altamente conhecedor das dimensões temporais, deduzi que ele saberia o horário correto em que eu partiria para encontra-lo.

Meu coração parecia intensamente açoitado por correntes de ácido à cada metro que eu me aproximava do local marcado. Um sabor azedo começou a expandir-se em minha boca e, à medida que andava, comecei a ouvir sons de sinos que ficavam cada vez mais altos. Repentinamente, me vi numa enorme plataforma branca, no meio do nada, como se os prédios, casas e pessoas houvessem desaparecido do mundo.

Então, mais à frente, avistei um menino pré-adolescente sentado numa cadeira de jantar e cercado de vários pombos vermelhos. Comecei a me aproximar do menino e, quando cheguei à uma determinada distância, os pombos de penas rubras voaram, criando vários pontos vermelhos que se espalharam pelas nuvens. O menino,olhando pesaroso para os pássaros que o abandonaram, disse num suave e lamentoso tom de voz:

//Você mandou meus pássaros embora.

Corando por completo, eu me desculpei com ele. Mal havia eu chegado e minha primeira impressão certamente se distanciou de um caráter positivo. "Que droga!", censurei-me intimamente em meu pensamento. O garoto, então, retirou seu olhar dos céus e me fitou com aqueles olhos cor de rosa. Aliás, o aspecto do menino me era completamente inconvencional. Sua pele era massantemente macia e pálida com tons rosados (principalmente ao redor dos olhos). Sua expressão era triste e soturna e, embora aparentasse que estava atento à minha presença, eu possuía a impressão de que seu olhar estava, na verdade, voltada ao vazio. Seu rosto era oval, com bochechas medianas, e cabelos muito lisos e compactos de cor de avelã que estavam penteados na forma de um livro partido quase ao meio. Estava ele vestido apenas com uma bermuda bege de onde varavam suas macérrimas pernas sem pelo, pés descalços e um tronco de onde, no meio do peito, brotavam cogumelos de pele com chapéus de cor dourado-ouro. Dos chapéus dos cogumelos saiam, a cada três segundos, pedacinhos brancos que subiam até o céu e se desmanchavam nas nuvens.

Outro elemento curioso eram as unhas vermelhas e cumpridas que o garoto possuía em ambas as mãos como se fossem postiças (embora parecessem totalmente reais... e certamente eram). Em suma, o menino possuía a aparência de um belíssimo boneco de pele e sua beleza era tão intensa, tal qual uma luz eterna, que, num determinado instante que meu olhar se deparou com seu delicado rosto, senti uma vontade quase animalesca de encostar meus lábios naquela pele macia. Senti meus lábios formigarem e meu desejo foi tornando-se mais intenso quando ele, com sua voz de veludo, disse-me calma e lentamente:

//Sente-se, amigo.  Sentiria-me constrangido se eu soubesse que desperdicei qualquer porção de seu precioso tempo.

//E me sentarei onde?/ questionei eu, olhando em volta e só recebendo a visão de uma abandonada plataforma branca.

O menino, assim, apontou o dedo macérrimo para atrás de mim e visualizei um trono feito de metal enferrujado. Não compreendi aquele gesto. Por que o Mestre das Trevas, que decidiu se apresentar á mim como um garoto franzino, me permitiria sentar num trono (ainda que tomado pela ferrugem) enquanto ele (o maligno) permaneceria sobre uma simples cadeira de madeira? Por que diminuir sua potência vaidosa para se apresentar à mim? Não me pareceu coerente. Mesmo assim, sentei no trono de metal frio indicado por ele e vi um leve sorriso estampar seu rosto por alguns segundos (como se soubesse o que eu estava pensando). Senti um odor de jasmim emanar intensamente de sua pele e, ao entrar em minhas narinas, parecia que uma enorme bolha se expandia dentro do meu peito. Tentei ignorar o incômodo que sentia em minha pele e, para não ser eclipsado pela beleza infantil e sobrenatural do menino, evitei olha-lo muito continuamente, mantendo maior foco no bloco de notas em minhas mãos. E tentei iniciar calmamente a entrevista, embora atropelasse as palavras:

//Bom, Senhor Lúcifer. Já irei dar inicio á entrevista e, primeiramente, gostaria de saber se posso chama-lo assim: Senhor Lúcifer.

//Logicamente./ respondeu, plácido como um monge/ Não se iluda com meu aspecto jovem. Tenho quase a mesma idade que o mundo, de acordo com a perspectiva temporal dos homens. Entretanto, devo informar que a dimensão do mal não possui taxas mensuráveis. Assim, os anos que possuo de existência e a forma de tratamento que você me dirige não tem qualquer importância.

//Tudo bem/ prossegui, com um leve pigarro/ Se me permite comentar, jamais achei que um espírito maligno pudesse ter um aspecto tão belo.

//A beleza é fruto da minha magnificência. Os humanos se esqueceram disso após algum tempo. Mas Deus partilhou comigo a faculdade do belo quando nasci e, assim, me aproveito dele para fazer-me o mais belo dos seres. As escrituras sagradas é que degradam a minha beleza.

//Bom...Minha primeira pergunta é: por que me convidou para fazermos esta entrevista?

Ele levou os olhos rosados aos céus e respondeu como se estivesse em devaneio:

//A humanidade pegou minha crueldade por muito tempo e tomou posse dela, como de partido próprio. Usou e continua usando meu nome discriminadamente como fonte de autoridade. Também utilizam o nome de Deus hipocritamente e sem o mesmo respeito de outrora. Deus, entretanto, faz sua justiça no devido tempo inalteradamente, por mais longo que seja. Eu não trabalho assim. Quero que anote todos os elementos máximos que denunciam minha força, esperteza, paciência e perspicácia. O mundo está me devendo o respeito que outrora me oferecia.

//Pensei apenas que me ajudaria em minha tarefa de estágio./ questionei com um arrepio na espinha, temendo estar sendo ousado mais do que o necessário.

Ele olhou diretamente em meus olhos com aqueles círculos oculares roseados e senti como se meu cérebro estivesse queimando profundamente. Parecia que um grande enxame de abelhas houvesse se instalado em meu crânio e fui preenchido por um incômodo continuo. E ele me disse, por fim:

//Lhe darei o que quer. Mas, primeiro, preciso de algo. Algo que você tem e que me deixará cada vez mais poderoso. Algo que devolverá meus antigos impulsos e me trará novamente a glória do mundo.

//E o que seria isso?

//Fique de pé./ ordenou, agora, com grave voz de imperador.

Imediatamente, ergui-me diante daquela ordem tão voraz. O garoto, então, desceu da cadeira de madeira e flutuou diante de mim. Seus pés deixaram o chão e seu rosto parou na altura do meu rosto. Ele me encarou por um bom tempo, e então, inesperadanente, ele me deu um beijo, um beijo forte e cortante. Senti sua saliva ácida descendo pela minha garganta e sua língua enroscando-se em volta dos meus dentes.

Então, com toda a força de seu maxilar e de seus dentes de leite, ele cortou minha língua de um modo que nem sei explicar. Desgrudei meus lábios dele por alguns instantes e dei um grito altamente estridente que fragmentou algumas pedras da plataforma. Aproveitando a minha boca aberta, o garoto agarrou minha nuca e voltou a me beijar com lábios ardentes como brasa. Depois, meu corpo paralisou-se por completo, com minha espinha dorsal ardendo bastante. Então, de maneira estranha e inexplicável, mesmo sem desgrudarmos os lábios, ouvi-o dizer: "Você passa a ser meu agora." Minha dor corporal se elevava continuamente, sentindo, dessa vez, as unhas grandes do garoto se encravarem em meu pescoço.

Atingindo um ardor corporal cada vez mais intenso, eu estava prestes a soltar um novo grito de dor quando, então, acordei deitado na cama do meu quarto. Minha pele estava suada e quente. As persianas sequer estavam erguidas e, na leve escuridão do meu quarto, dirigi meus olhos para o despertador. Eram seis e meia da manhã. Não conseguia crer que havia sido apenas um sonho, pois havia sentido uma dor real... uma expectativa real. Havia visto um menino real? Talvez eu houvesse visto e até tocado nele. Talvez o beijo tivesse sido real. Eu não sabia estava muito confuso.

Mas, se meu diálogo com Lúcifer houvesse sido apenas um sonho, então minha tarefa de estágio ainda estava pendente. Meu alivio deu lugar à uma preocupação antiga. Levantei-me sem muito ânimo e, afastei a persiana das janelas e deixei o quarto bem iluminado. E o mesmo sol que iluminou o recinto também deu luz à uma prancheta cheia de papeis (com várias anotações à caneta) que se encontrava sobre minha escrivaninha. Tomei a prancheta em minhas mãos e, com espanto, notei que era uma entrevista completa de autoria minha, intitulada "Entrevista com Lúcifer". Atrás dos papéis, encontrei um pequeno bilhete, onde, com aquela grafia antiga, se encontrava escrita: "Aqui está o nosso combinado. Da mesma forma que lhe dei a entrevista, estou agora com uma parte original de você. A melhor parte que eu poderia ter. Boa noite." 

E o tempo passou. Até hoje me encontro com a entrevista que o anjo maligno me deixou. Está guardado na minha gaveta. Há cada minuto, me pergunto quando poderei lê-la de novo sem aquela sensação de lábios quentes que o desgraçado do inferno deixou em minha boca.

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